domingo, 14 de abril de 2013

O MILAGRE DE ANNIE SULLIVAN




























Trechos de crítica
O Estado de S. Paulo – por Décio de Almeida Prado – 13/08/1967
O Milagre de Annie Sullivan transborda de bons sentimentos. Imaginem essa história, parece que feita de encomenda para ser contada pelas “Seleções”: Uma menina cega e surda, salva pela dedicação de uma professora incomparável. O milagre de William Gibson foi ter escrito com esse material, assim gotejante de possibilidades patéticas, assim impregnado do mais invencível otimismo norte-americano, uma peça sóbria e dramática, que nos prende e chega até a nos comover.
Não que seja uma obra-prima literária. Os seus aspectos mais exteriores, tudo o que diz respeito à vida da família Keller – o germe da incompreensão entre pai e filho, a relação reticente entre madrasta-enteado, o ciúme do irmão mais velho em relação à irmãzinha em torno da qual gravita a atividade da casa – é psicologia elementar expressa em termos dramáticos também elementares, de acordo com as técnicas determinadas pelos numerosos abecês da dramaturgia existentes no mercado. É a cópia já apagada, feita a carbono, de dezenas de outras peças e filmes similares.
A história de Helen Keller e Annie Sullivan, entretanto, possui um núcleo de realidade, duro, consistente, capaz de resistir a qualquer tentativa de edulcoração que o texto de Wlliam Gibson sabe respeitar. Quando as duas se encontram como aluna e professora, Helen Keller tem sete anos (a interprete brasileira aparenta o dobro da idade sem com isso comprometer o alcance da peça. Mas é como se tivesse muito menos, dada a circunstância de não ouvir e não enxergar nada. É egocêntrica, imperiosa, caprichosa, como uma criança mimada de dois ou três anos, com defeitos de personalidade que não abrandarão com a passagem do tempo: ninguém ousa contrariá-la. O que verdadeiramente a isola do mundo dos adultos, o que a torna irresponsável como um pequeno animal selvagem, não é a cegueira ou a surdez: é a piedade com que os outros a contemplam. A primeira dificuldade de Annie Sullivan é impor-lhe disciplina, submetê-la às regras da vida diária, deixando de considerá-la uma irremediável exceção. Não se trata de vencer a menina pelo amor, pelo carinho, que isto ela já recebe até demais, mas de apelar para a razão, de reintegrá-la na normalidade, de dar objetividade às suas relações humanas, de torná-la suscetível ao castigo como qualquer outra criança. A melhor arma de Annie Sullivan é essa severidade, essa dureza com os outros e consigo mesma, que o orfanato, a sua infância também áspera e cruel, lhe ensinaram. Ela não tem dó de Helen Keller porque nunca teve oportunidade de ter dó de si própria. A pieguice é assim expulsa das relações dessa estranha mestra e essa estranha discípula que formam o núcleo dramático da peça.
Até aqui estamos no terreno da educação das crianças anormais. É interessante, por nos revelar fatos menos conhecidos, por se referir a acontecimentos afastados da nossa experiência habitual porém sem significação mais extensa do que a visita a uma clínica especializada. A parte mais profunda e comovente vem a seguir, é a luta para chegar até a inteligência sem passar pelos órgãos dos sentidos – os olhos e os ouvidos – de maior receptividade intelectual. Annie Sullivan pede a Helen Keller que aprenda a pensar sem o auxílio das palavras, que se eleve até o conceito através de meios de comunicação tão rústicos como o tato. A peça transcende dessa forma os dados individuais, fazendo-nos participar, por assim dizer, da penosa ascensão do homem em direção ao pensamento abstrato. Quando a primeira palavra é finalmente comunicada e recebida (“água”, de tão longa tradição no pensamento humano), temos a impressão de que o triunfo não é de Annie Sullivan e de Helen Keller, mas de todos nós, de toda a humanidade, como se tivéssemos presenciado algo assim como a descoberta do fogo, um desses passos rudimentares e cruciais que deram início à caminhada do homem.
William Gibson atendo-se a este lado documentário contando com a própria realidade para lhe fornecer a substância dramática do texto, acaba por contar uma história que nos toca por remontar ao que possuímos de mais básico e primitivo: a necessidade de comunicação.
Também ascensional, como a peça, é a trajetória do Teatro Popular do Sesi, como atestam, melhor do que qualquer consideração, alguns números impressos no programa: 1.500 espectadores para sua primeira peça, 112.000 para a última. A finalidade do conjunto é dupla: social, ao oferecer espetáculos gratuitos a quem não está em condições de poder pagá-los, e artística, por achar que a plateia operária merece teatro da melhor qualidade. Schiller, Tchekhov, Shakespeare, Musset, serão as próximas estreias, numa política de aproximação entre teatro clássico e teatro popular que parece diretamente inspirada na experiência de Jean Vilar à frente do Teatro nacional Popular.
O crescimento do Teatro Popular do Sesi acompanhou de perto a evolução do seu diretor, Osmar Rodrigues Cruz, o mais modesto e, em muito sentidos, o mais seguro dos nossos encenadores. Sem pretender inovar ou renovar, contentando-se em seguir o que lhe dita o bom senso e uma já longa prática de palco (o que não significa que lhe faltem leitura ou conhecimento teóricos), vai estabelecendo aos poucos um padrão de regularidade capaz de competir sem desvantagem com as nossas melhores companhias profissionais. *
[...].
Os cenários e figurinos de Elizabeth Ribeiro, sem serem brilhantes, funcionam a contento.
*grifo nosso
(in Osmar Rodrigues Cruz Uma Vida no Teatro Hucitec 2001)


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