sábado, 4 de janeiro de 2014

A MORENINHA

DIÁRIO DE SÃO PAULO - COLUNA DE ALBERTO D’AVERSA – 17/01/1969
“A Moreninha” (1)
Um jovem amigo meu, desses que fazem questão de praticar a revolução permanente, cuja faixa de alimentos mentais oscila monotonamente entre Sartre-Brecht-Marcuse e alguns produtos caseiros, cuja ação verbal explode durante a atividade gastronômica da classe em restaurantes de metafísica tristeza, agrediu-me, na rua, com uma rajada de perguntas:
-       “Você gostou da “Moreninha?” 
No momento não compreendi, disse distraído:
-       “Qual moreninha?”
-       “A de Osmar.”
-       “Problema dele.”
-       “E seu também e de toda essa crítica caduca e vendida que escreve de teatro.”
Eu poderia ter retificado e entrado na zona das recíprocas xingações; não valia a pena; preferi deixar o meu jovem amigo na ilusão que crítico teatral é venal, corrupto e corruptível na secreta esperança de vir a ter, depois de vários anos de impoluta profissão, concretas propostas monetárias, ou, em casos de compreensíveis pudores da parte empresarial, ofertas de carros ou casas de campos com piscina.
Continuou:
-       “Você viu teatro mais alienado (aparte: notei que esse adjetivo vem sendo usado em proporção direta da alienação de quem o pronuncia; fecho a parêntese) desta “Moreninha”? Nós estamos na face oculta da terra, somos vegetais beócios, o homem está dando voltas ao redor da lua, temos os “Soyuz 4 e 5”, aí, no céu e nós, aqui, estamos fazendo a “Moreninha”, pô!”
-       “Fala com Zé, ele sabe.”
-       “Que Zé?”
-       “Celso.”
-       “Mas o diretor é Osmar.
-       “Mas Celso, que faz Galileu, está na obrigação de ficar na base de lançamento dos foguetes, Osmar pode ficar em órbita. Acontece porém o contrário, não acha?”
-       “Acho nada porque não compreendo.”
Fui obrigado então a fazer um discurso extenso cuja síntese era, mais ou menos, esta:
“Uma sociedade teatral, como qualquer outra sociedade, vive e atua sobre planos diferenciados onde as convenções (ver Eliott – “Civilização e Cultura”) são feitas para serem respeitadas até pelos anti-convencionais que, como é sabido, destruindo uma convenção, automaticamente, criam um novo acordo. Ora, ninguém pode exigir um só tipo de teatro assim como não pode exigir um só tipo de consumo: deve existir um teatro de vanguarda e até um teatro de retaguarda com todos os estágios intermediários: o verdadeiramente importante é que cada um cumpra bem o seu papel, que a vigarice não seja hábito: que o teatro que afirma ser político-social não seja fascista e burguês, que o de vanguarda não seja remastigação de experiências européias de há trinta ou mais anos, que o de comédia saiba fazer rir e assim por diante. Desonesto é prometer champanha e oferecer Coca-cola.
Osmar Rodrigues Cruz, Silveira e Petraglia nos prometeram um musical extraído de “A Moreninha” de Joaquim e, milagre!, nos deram “A Moreninha” de Joaquim: nestes momentos em que o teatro político virou hermético, covarde e oportunista, o de vanguarda renunciou totalmente à inteligência e o melodramático perdeu o conhecimento das regras do jogo e tornou-se um produto híbrido e insulso, produções como esta “Moreninha” consolam pela honestidade das intenções e a eficácia da realização. (cont.)
Uma moreninha necessária (2)
Entre todas as disciplinas parece que a sociologia foi a que herdou o incomodo patrimônio das frases feitas e das convenções arqueológicas condenando regras inevitáveis a frases de folhinhas. Quem não escutou: - cada país tem o governo que merece - ?.. ou, o teatro, o cinema, o futebol, a metalúrgica que merece? etc. – A obviedade da constatação berra altíssimo com voz impostada por dona Maria José de Carvalho: milagre seria, logicamente, o contrário.
Há anos que estamos pregando da necessidade de um teatro comercial dignitosamente realizado, limpamente produzido e sãmente administrado; em todas as artes existe uma produção que faz parte da retórica mais que da poética da mesma arte; no Brasil os produtos da primeira categoria são, por condicionamento histórico, mais numerosos e aceitos que os da segunda, por um Drummond ou um Guimarães Rosa quantos Jorge Amado e Zé Mauro Vasconcelos; por um Vila Lobos e um Santoro quantos Vandré e Tom Jobim: o novo Torquemada poderia fazer uma infinita lista de cassações. Todos compreendem essas evidentes constatações, todos menos a gente de teatro e de cinema. Atualmente qualquer filme nacional de uma certa ambição é feito não mais em função do público mas em função dos vários festivais; qualquer produção de teatro não é mais feita (como queriam Aristóteles e B. Brecht para divertir e produzir prazer) mas para ficar na história do espetáculo mundial; os nossos diretores trabalham agora somente em função da eternidade ou da intemporalidade histórica; montar uma comédia de Abílio, por exemplo, ou de L. C. Muniz é crime de imbecilidade, opera-se somente visando uma internacionalidade vistosa e improdutiva. Todos estão esquecendo Araraquara.
Osmar Rodrigues Cruz é, até agora, o único diretor que, como Paulo Autran, conhece o público ao qual se dirige; conhecimento não determinado por irresistível vocação à mediocridade (como já foi dito) – seu anterior repertório confirma o contrário – mas pelo contato diário com uma massa que vai ao teatro exigindo determinadas satisfações.
Cansei de dizer, mas não é demais repetir: teatro é antes civilização de espetáculo e depois de textos: vale mais um “Milagre de Annie Sullivan” otimamente representado que um “Galileu Galilei” de equívocas significações, vale mais uma “Moreninha” que entretém que um Shakespeare anestésico e soporífero.
Produções como esta “Moreninha” são necessárias por criar as condições de inevitável presença de um público, de educação teatral, de didatismo mínimo e indispensável; se não existem espectadores os gênios não podem fazer os Brecht de moda, as elites desaparecem, o engano não convence mais.
E depois, quem pode afirmar que o produto comercial seja um produto fácil? Esqueceram as direções de “4 em um quarto”, “Os inimigos” e, por exemplo, a recente de “Tudo no jardim”? (continua porque me diverte)
Uma moreninha chamada Marília (3)
Quem nesta “Moreninha“ do Joaquim, adaptada por Miroel Silveira, musicada por Cláudio Petraglia e dirigida por Osmar R. Cruz, espera ver e escutar palavras, situações e ações sobre:
a)     táticas das guerrilhas na América Latina;
b)    posição de Nixon a respeito da Aliança para o Progresso;
c)     o Vietnã como ponto de conflito ou de equilíbrio entre as grandes potências mundiais;
d)    problemas da U.N.E. e da C.B.D.;
e)     reforma agrária;
f)     incesto;
g)    personagens que exercem antropofagia física ou moral;
h)     posição do intelectual brasileiro frente ao Ato Institucional nº 5;
i)      ...e preocupações parecidas...
É melhor que não vá ao Teatro Anchieta porque poderia sair levemente decepcionado.
Quem, pelo contrário, quer passar duas horas de extrema amabilidade, de gostoso divertimento e de repousante descanso, pode ir sem susto porque, além do prometido, poderá encontrar coisas inesperadas de agradável surpresa...
(...) Depois de tudo o que escrevi sobre esse espetáculo acho que, de parte minha, seria retórica burrice louvar a exata e fantástica direção de Osmar Rodrigues Cruz.