segunda-feira, 7 de janeiro de 2019



Instituto Osmar Rodrigues Cruz




Acredito que essa postagem possa ser apropriada ao momento conturbado que vivemos em relação a cultura.



"Um modelo de política cultural em relação ao teatro"


Os mecanismos de patrocínio ao teatro sempre existiram por parte do Estado, pois a arte, de uma maneira geral, estava sempre presente nos mecanismos de atuação do próprio Estado. O teatro e o Estado estavam juntos desde o início do teatro ocidental na Grécia Antiga. Lá o Estado promovia festivais de teatro, que eram oferecidos como atividade obrigatória e, assim como o esporte, era motivo de congraçamento entre os cidadãos[1]. Na Roma Antiga, o teatro era parte integrante da vida dos cidadãos, com o objetivo de ser meramente diversão. Na Idade Média o teatro é mantido pela Igreja, que nessa época, não deixava de ser o próprio Estado, exercendo poder preponderante. Durante a Monarquia o teatro está dentro dos palácios com as companhias do rei e posteriormente, com a edificação de prédios próprios, onde são abrigadas as companhias oficiais, surge, então, o conceito de teatro nacional.
O Teatro Nacional forma-se como um dos mecanismos de reafirmação e unificação da nação frente ao imperialismo econômico, político e cultural de outras nações ameaçadoras. Tem, portanto, uma missão específica tornando-se, segundo Jack Lang, um serviço público nacional, beneficiário de créditos do Estado, submetendo-se a um controle administrativo rigoroso, assumindo uma função cultural de prestígio, propaganda e educação.
Após a Revolução Francesa, que difunde em toda a Europa um novo conceito de cidadão, uma nova ordem se instaura, um novo estado se forma. Consequentemente a missão do Teatro Nacional se modifica, passando a ter a função de conservar as obras do passado, bem como preservar as tradições das diversas regiões do país, sem deixar de levar à cena espetáculos experimentais. São criadas diversas associações de escritores, de autores teatrais, visto ser a preocupação precípua a afirmação da cidadania em todos os países que aboliram a monarquia.
Certamente, à margem das companhias oficiais sempre existiu os grupos “alternativos”, aos quais se deve boa parte das inovações que se processaram no teatro, como a comédia na Grécia, os saltimbancos percorrendo todas as regiões mais distantes da Europa e a Commedia Dell’arte, as quais jamais receberam patrocínio do Estado. Eram sustentados predominantemente pelo povo que os acolhia e suas produções eram as mais humildes possíveis, porém o seu discurso era ferino, levando alegria e reflexão ao povo tão marginalizado quanto as próprias companhias.
Existiram também, como forma de patrocínio ao teatro, a figura do mecenas, rico e amante das boas artes, patrocinava-as com o intuito de auto promover-se. E as organizações de massa, principalmente na ex-União Soviética e ex-Alemanha Oriental, as quais mantinham o teatro tanto como forma de veiculação e implantação do regime comunista, como de formação, através dos sindicatos, e educação do povo.
Com o surgimento do capitalismo surge uma nova classe social, a burguesia, fazendo nascer um novo teatro. São impostas novas relações sociais mediadas pelo capital, regidas pela economia de mercado. Os meios de produção são controlados por uma classe dominante, que dita as regras do consumo e as leis de mercado. E as leis de mercado são imperativas definindo o que pode e o que não pode ser consumido, através da implantação da homogeneidade e massificação, criando a cultura de massas, e a liquidação da heterogeneidade, eliminando as diferenças regionais. Há a privatização da vida social, enquanto questão a ser administrada, passando o Estado a ser o mero gerenciador da nação, pois o poder econômico não se encontra mais nas mãos do Estado. A sociedade passa a ter fortes divisões sociais, de um lado a classe dominante detentora dos meios de produção, de outro a classe trabalhadora detentora da força de produção. Emerge a figura do especialista e das instituições especializadas, que são os mediadores entre as classes, intérpretes e estudiosos dos problemas sociais da massa.
Sendo o teatro uma arte social por excelência, pois é produção cultural como tantas outras, mesmo com o advento do capitalismo, continua uma pequena parte dele sendo patrocinado pelo Estado, outra, passa a se oferecer ao mercado de consumo que surge, sendo responsável pela formação das primeiras companhias comerciais.
Sem o amparo do Estado, o teatro descobre-se uma arte de alto custo de produção, custo de pessoal, custo do ingresso. Surge um dilema, pois se a companhia vende seus ingressos a preços elevados, limita seu público às classes mais privilegiadas compostas de poucas pessoas, porém se os oferece a preços acessíveis a todas as classes, corre o risco de ficar deficitária, pois nem todos têm o hábito de ir ao teatro, pois o tomam como uma arte de elite, não podendo pagar sequer um preço mais baixo. Ocorre que o investimento numa dada produção teatral pressupõe seu sucesso de crítica e de público, para obtenção de um bom resultado de bilheteria. Então, como o teatro não é uma mercadoria, que não obtendo venda pode ser estocado e vendido mais adiante, ele depende substancialmente do sucesso de público, devendo estar livre das leis que regem o mercado, bem como o público deve estar livre dos abusivos preços dos ingressos, que o mantém longe de uma sala de espetáculo.
Justifica-se assim uma intervenção do Estado, pois o teatro não consegue sobreviver de seus próprios recursos, menos ainda se submetendo às leis de mercado e ao patrocínio privado. Contudo esse patrocínio do Estado deve ser isento de discriminação na distribuição de seus recursos, como ocorre em toda Europa, onde inclusive a pesquisa teatral é objeto de amparo do Estado, sendo o teatro oferecido a todas as classes, sem distinção, também através do ingresso gratuito. 
Assimilamos todas essas formas de patrocínio do teatro, sejam elas estatais, como as de mercado, num arremedo do que ainda está por se criar diante de nossa realidade. Se por um lado passamos pelo auxílio “real” que permitiu a construção das primeiras casas teatrais, o teatro foi patrocinado pela ditadura de Vargas que implantou o teatro nacional como forma de afirmação totalitária e populista, desvirtuando o verdadeiro sentido de um teatro nacional. Por outro lado, o teatro comercial tem seu estilo marcadamente definido e atuante em todo país, constituindo fonte de renda a muitos empresários, que ao produzirem um teatro sem o menor comprometimento com a qualidade, tratam-no como mercadoria. 
O Estado, por sua vez, de todas as formas de patrocínio ao teatro “exportadas” experimentou todas, sem se preocupar em criar uma que fosse mais condizente com a realidade brasileira, com os problemas que se arrastam desde nossa colonização, como nossa dependência cultural.   
Pois, não só o Estado é autoritário no país, mas toda a sociedade também, o que se reflete na cultura e em todas as práticas culturais, tornando-as altamente centralizadoras. Assim sendo, todo projeto cultural visa uniformizar essa cultura, mantendo o princípio de dependência e, ao mesmo tempo em que descarta qualquer iniciativa de autonomia das manifestações culturais, instrumentaliza as práticas culturais, produzindo medidas “de cima para baixo”. Impõe uma maneira de se “produzir cultura”, como se fosse possível existir somente uma. Trata de promover mega eventos, geralmente da cultura rotulada de erudita, chamando a isso de projetos culturais, no lugar de reunir planos a serem discutidos com todos os envolvidos com as artes. Então, exibem seus resultados como um sucesso de público de uma iniciativa governamental de arte popular! 
Porém, nunca se viu mega eventos de teatro, arte de alto custo, arte que pode subverter, em apresentações gratuitas. Teatro ao ar livre, com obras nacionais, oferecidas gratuitamente, com produções de qualidade, que poderiam excursionar pelas cidades, isso nunca se realizou. Temos conhecimento de uma companhia que fez história em São Paulo e que se consagrou como experiência única no Brasil, levando repertório de alto nível com excelentes produções, em prédio próprio, com ingressos gratuitos, mas patrocinada pela indústria paulista, provando que é possível um teatro nacional e popular ser subvencionado. [2] 
O sentido de teatro nacional foi desvirtuado, bem como o de popular, pois para se tornar produto, a apropriação do que é popular precisa ser “lapidada”, filtrada pela classe dominante, representante do poder econômico, que passa a normatizar o que é popular e o que é erudito. Surge a noção de produto artístico, pois é preciso oferecer mercadorias para a classe A, como para a classe B, mas nunca para a classe C, pois essa não pode comprar produto tão sofisticado, tão supérfluo como o teatro. Porque para o Estado, o teatro é uma coisa fútil, um privilégio de poucos. Desconhecem completamente as várias funções que o teatro tem como parte da sociedade. 
Como forma de uma pseudo-inclusão da cultura no meio social são criadas pelo Estado as leis de patrocínio, tanto em âmbito federal como em âmbito estadual e municipal. Nomeadas como Leis de Incentivo à Cultura são basicamente normas para que o candidato a patrocínio possa receber um aval do Estado, para então se tornar candidato ao patrocínio privado das empresas nacionais. Ora, ao se candidatar ao patrocínio já se sabe que as empresas não irão colocar seu nome em espetáculos que possam ferir algum princípio das mencionadas leis de mercado. Mostrando um forte controle, seja por parte do estado, seja por parte do mercado, as iniciativas experimentais estão totalmente excluídas da “proteção” dessas leis, como também qualquer pesquisa. A atividade teatral fica concentrada no grupo já eleito pelo mercado, restrita aos nomes principalmente consagrados pelo meio de comunicação de massa mais eficaz em produzir artistas virtuais, que é a televisão, restando à marginalidade para as poucas atividades inovadoras, como também para a produção de um teatro que possa atingir camadas diversificadas da população. 
O Estado, enquanto provedor, desvia os recursos que poderiam subsidiar um teatro verdadeiramente nacional e popular, pois destina uma ínfima quantia para todas as atividades culturais, não dando conta das necessidades básicas de uma população, que se mostra cada vez mais preocupada em satisfazer o mencionado mercado, trocando o título de cidadão pelo de consumidor. Não se preocupa nem mesmo em “consumir” cultura, pois nunca lhe foi oferecida qualquer arte como necessidade, e o que, no entanto, é oferecido como gratuito é tomado como pouco valioso, mal feito, “amador”. 
No entanto, o teatro é necessidade, é prazer. Se o destino das pessoas e seus problemas do cotidiano não são colocados à vista, e o teatro é o meio de congregar as pessoas para tanto, cria-se uma sociedade árida e carente de sua própria humanidade. Estar no mundo é atuar, é agir, é fazer, mas também é prazer, é contemplação, é o teatro, que dentre as inúmeras artes, é apenas um dos canais para isso, além de ter a possibilidade de promover a educação e socializar os indivíduos. 
Porém, convencer burocratas e governantes de que a existência e manutenção do teatro são tão necessárias quanto a existência e manutenção de escolas é tarefa das mais exaustivas. Poucos são aqueles que não se viram possuídos pelo mencionado autoritarismo que contamina nossa sociedade. Entretanto é preciso reagir, pois nada se produz na letargia e submissão, é necessário ousadia. 
A criação da CET (Comissão Estadual de Teatro) mostrou ousadia e determinação ao elaborar um plano para o desenvolvimento do teatro em várias frentes. Seja no incentivo ao teatro amador, seja na promoção de cursos e conferências, ou na distribuição de verbas e premiações. Agindo com independência, o que é fundamental nas iniciativas de comissões designadas para o desenvolvimento cultural, mostrou que é possível o retorno do teatro ao seu verdadeiro lugar na sociedade. Se comissões como essa não tivessem existido, certamente não seria possível o surgimento de diversos profissionais, autores e atores, técnicos e diretores, que tanto contribuíram para o teatro paulista. 
Mas a realidade hoje é bem diferente, e o que se percebe é que a comissão, outrora atuante e representante da comunidade artística, pouco pode fazer pelo teatro. Foi reduzida a um mero órgão atrelado às decisões da Secretaria de Cultura, as quais aceita, pois não há mais a possibilidade de independência para a criação de programas, menos ainda ousadia para compreender as necessidades do momento histórico. Compactua com a implantação das chamadas leis de incentivo, que centralizam a atuação artística, sem questionar o quanto essas leis são coorporativas, segregando boa parte das produções teatrais. 
Soluções não são encontradas em gabinetes, mas no encontro da própria comunidade com o governo, pois enquanto o mundo rompe suas fronteiras através da descoberta de novas tecnologias, a ação do homem no mundo exige que ele se direcione cada vez mais para os problemas locais, de sua cidade e no máximo de seu estado. Uma nação se resguarda quando faz prevalecer suas diferenças e sua própria diversidade. Agindo-se em âmbito restrito pode-se obter um resultado muito maior do que a tentativa de estabelecer, por exemplo, um plano nacional. 
A criação de comissões municipais e estaduais direcionadas a ouvir, não só a comunidade teatral, mas toda comunidade que habita na cidade ou estado, pode trazer de volta uma atuação do Estado como legítimo provedor das necessidades básicas dessa população determinada. Representando o próprio povo, a comissão pode ressaltar as regionalidades, fazendo eclodir talentos naturais, possibilitando a expansão da experimentação, proporcionando a discussão dos seus próprios problemas. 
A ação do governo, ao se descentralizar delegando poder e independência na implantação de políticas culturais locais, através de comissões, faz-se mais presente cumprindo seu papel. Fortalece a ação local e permite o intercâmbio com outras realidades. Talvez não seja um modelo, pois ainda está por fazer-se, talvez não seja a solução, pois ainda não se permitiu que houvesse continuidade. 
Portanto, o que se conclui da iniciativa da criação da CET foi uma amostra de que ações locais podem tornar possível a implantação de uma política cultural genuinamente brasileira. Apontar os erros dessa ação tornou-se impossível, quando se leva em conta o momento histórico em que ela se deu. Todavia, uma profunda reflexão sobre o seu trabalho pode suscitar, sem ter a pretensão de apontar caminhos, a forte necessidade de se repensar as atuais políticas culturais implementadas no Brasil.


[1]  O conceito de cidadão na Grécia excluía as mulheres, as crianças e os escravos.
[2]  O Teatro Popular do Sesi de São Paulo manteve por 30 anos seus espetáculos, tendo sido criado por Osmar Rodrigues Cruz.


Conclusão da Dissertação de Mestrado de Eugenia Rodrigues Cruz na ECA - USP em 2000

"Comissão Estadual de Teatro de São Paulo (1956 – 1960)"