domingo, 17 de novembro de 2013

DOIS NA GANGORRA

OUTRAS DIREÇÕES

Iniciamos hoje as direções de espetáculos realizadas por Osmar Rodrigues Cruz, paralelas às direções do TPS. 


Consta do programa da peça:
“Os atores discutem a direção e a controvertida personalidade do diretor” (por Juca e Lilian)
Osmar escapa ao padrão convencional do moderno diretor de teatro. Não constatamos durante os ensaios ataques de histeria, manifestações de impotência intelectual ou desfalecimento em face da incompreensão dos seus dirigidos.
Habituados muitas vezes a tratar com artistas-geniais-geniosos, ficamos um pouco sem graça ao constatar que o nosso diretor não passa de uma criatura apenas normal. E o incrível é que ele tinha certeza sobre o que queria. Tinha uma idéia clara quanto à peça, quanto às personagens e quanto ao que pretendia transmitir.
Isso não quer dizer que essa idéia seja correta, apenas que ele atingiu o seu (dele) objetivo.
Só uma coisa não compreendemos na sua normal personalidade. Sempre nos pareceu corriqueiro que seres humanos tivessem o direito de suspender momentaneamente seus afazeres para tomar sua refeição diária, mitigar a sede com um mísero copo d’água ou “ir lá fora” enfim. Mas Osmar acha que não. E sempre que isto acontece e é de se esperar que isto aconteça aos animais superiores  –  na cabeça dele se desencadeia um complexo de culpa de caráter nitidamente patológico, só aplacado pelo regime de trabalho escravo a que ele nos submeteu a fim de anestesiar seus remordimentos.
Como nosso diretor chorasse na platéia a cada ensaio de cenas dramáticas, desenvolvemos uma dúvida em nosso espírito; ou já havíamos atingido um bom nível de atuação a ponto de provocar lágrimas, ou essas manifestações se deviam à sua excessiva sensibilidade.
Nem uma coisa nem outra: simplesmente desvio do cepto e uso indiscriminado de um desentupidor nasal do qual ele jamais se separa.
Apesar de tudo somos de boa constituição física. Sobrevivemos às suas enxaquecas, à sua mania de feitor de senzala, à sua tara pela perfeição, às suas fungadelas, ao seu espírito de gozador incorrigível e bem humorado. Saímos vivos do empreendimento e tocados pela sua amizade e gentileza.
Há controvérsias, mas gente boa tá aí.                                                                    

“Por questões de modéstia Juca prefere falar de Lilian e calar sobre si mesmo”
Que ela tinha saído de um lugar muito estranho eu percebi logo nos primeiros ensaios: com a maior naturalidade do mundo a moça dizia “trancar” no lugar de “prender”, “infante” no lugar de “moleque”, “taça” no lugar de “copo”, “umbral” e não “batente”; até – se não me engano – ela andou usando “ânfora” no lugar de “litro”. Foi quando eu soube que ela tinha nascido nas querências de Porto Alegre e tudo se esclareceu para mim. A despeito das dificuldades iniciais de comunicação sua língua é por demais exótica para as minhas limitações linguísticas – tem sido uma beleza trabalhar com ela. Pelo menos até aqui. Só conhecia Lilian de palco: “Onde canta o sabiá”, “Noite de Iguana”, “Toda donzela tem um pai que é uma fera”, “Mary, Mary” e finalmente “Quem tem medo de Virgínia Woolf” com Cacilda e Walmor, e cheguei a conclusão, pois lhe deram o “Saci” de melhor atriz coadjuvante em “Virgínia Woolf”.
A gaúcha é muito fechada, evita falar sobre si, sobre sua vida e seu ofício, mas a saca-rolha e talho de foice fui arrancando umas lascas do seu início de carreira : Diz que começou em 56 em Porto Alegre, fazendo “À margem da vida” no Teatro Universitário, direção de Abujamra. Devia ser gozado ver ela recitando Tennessee Williams lá na língua dela. Começou levantando prêmio “O Negrinho do Pastoreio”. Bom, um prêmio gaúcho. “O Pai” de Strindberg, “A Bilha Quebrada” de Kleist foram outras peças que ela andou fazendo lá pelo Sul. Por volta de 63 Walmor e Cacilda levaram a Porto Alegre “Em moeda corrente do País” e “Oscar”; e para realizar um bom intercâmbio cultural entre metrópole e província trouxeram Lilian na bagagem. (Intercâmbio aliás altamente desvantajoso para a província nesse caso)
“Lemmerites”- É um apelido que eu botei nela para desbastar um pouco as consoantes de Lemmertz – também ataca de cinema. “Corpo ardente” de Walter Hugo Khouri que ela filmou durante a carreira de Virgínia Woolf lhe deu o prêmio de melhor coadjuvante pelo I.N.C., donde se conclui que ela tem a mania de começar esnobando. Defeito de criação? Sei lá acho que esnobismo de gaúcho, só isso. Depois veio “As Cariocas” de Fernando de Barros. E agora anda dublando seu papel em “As Amorosas” de Khouri, que logo estará pelos cinemas daqui e do mundo. É minha boa parceira de “Buraco”; jogamos cientificamente e fazemos uma dupla absolutamente invencível. Só perdemos mesmo quando os azares da sorte se tornam azares de fato.
Tem uma filhinha por demais boneca e linda – a Júlia, Juju para todos – de quem ela se despede às noites fazendo binóculo com as mãos, olhando-se ambas nos olhos e dando-se os “beijinhos tradicionais”. Uma ternura!
Lemerites fila cigarros “Consul” e chupa compulsivamente umas bolinhas de mentol, na razão de um milhão por dia, um verdadeiro inferno. É do signo dos gêmeos, toma café sem açúcar, penteia os cabelos de dois em dois minutos, come uma tonelada de rocambole por dia e fala pelos cotovelos na sua língua. Mantém com ferocidade usos e costumes da província de onde veio e resiste com igual ferocidade às benéficas influências da civilização paulista.

“Vice-versa”
Juca nasceu em São Roque, é o que ele diz. Eu pensei que não nascesse gente lá. Mas vou lhe dar um crédito de confiança. Ele também me contou que quando terminou o serviço militar esteve um tanto confuso quanto ao que iria fazer. E provou isso, pois tendo cursado durante quatro anos a faculdade de direito, bandeou-se para a Escola de Arte Dramática. Claro que este curso ele completou, pois pelo jeito nasceu para isso. Pelo menos é o que indica a sua ficha técnica. Ele estreou como profissional em “A Semente” de G. Guarnieri, no Teatro Brasileiro de Comédia. Alguém deve tê-lo convidado por engano, mas ele levou o convite a sério, e não arredou o pé de lá por muito tempo. Atrapalhou em várias peças, entre as quais “As Almas Mortas” de Gogol, “A Escada” de Jorge Andrade, “A Morte do Caixeiro Viajante” de A. Müller, pela qual – milagre! – ganhou o prêmio Saci como melhor coadjuvante de 62. Acho que deveríamos investigar a atribuição desse prêmio. Mas, pensando melhor, se não fora o talento mereceria pela simpatia. Em 62 resolveu dar umas voltinhas e associou-se com Guarnieri, Paulo José, Flávio Império e  A. Boal, na direção do Teatro de Arena. No Arena fez “Eles não usam Black-tie”, “O Noviço”, “A Mandrágora”, “O Melhor Juiz o Rei” e “O Filho do Cão”. Ao tempo das duas últimas peças eu já tinha emigrado dos “pagos” comprovei que afinal de contas ele tinha futuro.
Quando vi “Depois da Queda” de A. Müller, no Teatro Maria Della Costa me convenci que afinal de contas São Roque com seus trinta mil habitantes não é de desprezar.
Ele fez no Municipal “Júlio César” de Shakespeare. Essa eu não vi, mas me disseram que ele era o melhor. E eu acredito. Porque depois desta eu assisti “O Estranho Casal” no Teatro Ruth Escobar e ele estava bom as pampas.
Em televisão ele também não é de todo mal. Senão ele não estaria na TV Tupi Canal 4 desde 64. Trabalhou na “TV de Vanguarda” em : “As Feiticeiras de Salém”, “Hamlet”, “Esta noite improvisamos” e “Em moeda corrente do País”. E meteu o nariz em inúmeras novelas “Cara Suja”, “Gutierritos”(Oba!), “A ré misteriosa”, “A Outra”, “Paixão Proibida”, “Estrelas no Chão”.
E fez até cinema! Com Person, “O caso dos irmãos Naves”.
E como ele não pára quieto andou fazendo uma série de recitais na VII Bienal de São Paulo e em mais umas trinta cidades do Interior de São Paulo e outros Estados. E também foi contratado várias vezes pela Comissão Estadual de Teatro para dar cursos e conferências em faculdades e na própria CET (Comissão Estadual de Teatro).
Afora tudo que foi dito acima ele é uma pessoa excelente. Tem uma disposição inesgotável para o trabalho. Vive gritando que a vida está sensacional. Faz um regime de carboidratos mas adora a comida. Vai toda segunda-feira visitar Mamã em São Roque, o que prova que é um rapaz de bons sentimentos. Desconfio que ele tem complexo de Édipo, mas segundo seu psicanalista esse problema não existe.

Mas...implica muito com a civilização gaúcha. Isto me irrita. Mas eu o perdôo porque ele é um moço muito bom.




BOLSA DE CINEMA E TEATRO - FOLHA DE SÃO PAULO – 03/1968 
1º - Dois na Gangorra (Aliança Francesa)
2º - Deus lhe Pague (Brasileiro de Comédia)
3º - O Homem do Princípio ao Fim (Bela Vista)
4º - Sérgio Ricardo na Praça do povo (Arena)
5º - Navalha na Carne (Oficina)
6º - O Olho Azul da Falecida (Cacilda Becker)
7º - Lisístrata, A Greve do Sexo (O Galpão)