quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Capítulo 3 - Segunda parte

Acredito que um grupo de trabalho, seja para qualquer oficina, que se encontra pela primeira vez carece de alguma forma de exercício de integração, a fim de que os participantes e professor possam se conhecer e se integrar, criando um ambiente específico para o grupo. Como primeiro procedimento costumo reunir o grupo em um imenso círculo, no caso desses grupos, onde todos possam ver a todos. Ao sentarem-se, já se percebe aquele mais tímido, que se esconde atrás do outro, ou aquele que já se coloca com um sorriso, olhando atentamente o professor. Ao me colocar na roda, após uma rápida apresentação de todos, estabeleço claramente as regras para nosso trabalho, sabendo que elas poderão contribuir para o sucesso e o bom desempenho de todos. Coloco-me como organizadora, não como professora. Lembro sempre, porque acredito, que a organização natural e observadora das necessidades dos outros, não é nada pesado ou difícil de cumprir. Se olharmos o outro como companheiro de jornada, tudo ficará mais fácil, se fizermos cumprir nossas regras, seremos todos responsáveis por nossas falhas. Não eram muitas as exigências, mas deveriam ser cumpridas à risca: horário para início e término; evitar ao máximo faltar; interesse, mesmo que o desafio seja grande; todos ajudarem a todos. Não estabelecido o fator competição, todos começavam a relaxar, ao mesmo tempo em que sabiam que tinham um ambiente acolhedor. Parece-me que aos adolescentes tudo isso parecia o paraíso, pois não tinham toda essa atenção em casa ou na escola, todo esse ritual, todas essas regras a cumprir, porém regras que não invadiam sua privacidade, ao contrário, deixavam uma larga margem de liberdade. Se o teatro é feito de muita disciplina e dedicação, também é feito com uma boa dose de liberdade, sem ela não há criação. Essa liberdade, dentro da Oficina, era transmitida com muito humor, por meio da brincadeira na hora certa.

Acredito que os resultados obtidos nos exercícios e nos jogos, somente tenham sido possíveis graças à introdução da aula baseada nos exercícios respiratórios e movimentos de Reich. Toda aula tinha seu ritual, todos eram avisados a chegar com 15 a 10 minutos de antecedência do horário previsto, a fim de se prepararem, trocarem de roupa, irem ao banheiro ou mesmo descansarem um pouco do longo percurso que a maioria fazia da periferia da cidade até o Centro Cultural São Paulo. Tínhamos um aparelho de som que sempre nos era cedido e eu levava as fitas conforme o tema da aula. Acredito que a mistura de estilos que iam desde a música clássica, com coletâneas de adágios e minuetos, principalmente Mozart e Bach, até músicas new age, inspiravam os alunos a se concentrarem não na música, mas na respiração. Todos se colocavam de forma a que pudessem me ver, afastados um do outro o tanto que o espaço oferecido permitisse. Num primeiro momento, eu contava um pouco sobre Reich, sua técnica terapêutica e a aproximação que essa técnica permitia para o desenvolvimento corporal do ator. Explicava sempre que qualquer alteração deveria ser comunicada, visto que algumas pessoas são mais sensíveis quando lidam com a respiração. Perguntava de algum mal físico, doença crônica, para que eu pudesse ter mais atenção nesse aluno e orientá-lo. Todos eram muito receptivos às explicações e não pairavam dúvidas quanto aos três pontos básicos: tomar a música apenas como fundo, para inspiração; não sair do seu lugar, mas movimentar o corpo com os pés separados na medida de cada um; ficar de olhos fechados o tempo todo e fixar-se, mesmo movimentando-se, o que não é nada fácil, na inspiração em uma só vez e na expiração em duas vezes, fazendo uma ligeira pausa antes da última e soltando-a como se quisesse empurrar o ar para fora. O exercício durava em média cinco a dez minutos, em escala crescente nas aulas que se seguiam, nunca excedendo vinte minutos. Sempre deixava bem claro que os efeitos jamais seriam de “baixar o santo” ou de algum milagre, por isso a consciência da realidade era primordial em todo tempo.

Ora, o movimento junto à respiração, mesmo que essa seja esquecida às vezes e retomada quando lembrada pelo professor, ia, pouco a pouco, soltando as travas corporais que geralmente se alojam no adolescente, nos ombros e nas pernas. Nas primeiras vezes era difícil começar, por isso o estímulo era pontuar esses lugares onde geralmente se alojam as tensões, encorajá-los a mexer o corpo e respirar, o que provocaria uma boa sensação. Motivá-los a não terem medo, porque todos estavam de olhos fechados, portanto ninguém poderia ver ninguém, ninguém poderia saber o que o outro estava fazendo.

Na segunda vez eles já estavam um pouco mais soltos e já se conseguia definir aquilo que Reich aponta como couraças musculares, aqueles lugares que eram intocados pelo movimento, ali residia o traço. O corpo todo obedecia ao fluxo da respiração, deixava-se enlevar pela música e o ritmo da respiração, mas o foco, o traço principal permanecia intocado. Isso mostrava a constatação das dificuldades que se dariam no jogo que viria a seguir. Muito raramente, pelo tempo exíguo das Oficinas, alguém conseguia ultrapassar o traço e romper a couraça, sem se dar conta disso, apenas notavam uma sensação de estar melhor fisicamente. E não poderia ser de outro modo, não se tratava de uma terapia e não poderia haver avaliações, apenas um encaminhamento e incentivo para que prosseguisse, caso isso fosse solicitado.

Alguns mal se moviam e expressavam um medo enorme em respirar, era uma pequena minoria que também não conseguia se integrar nos jogos. Se não havia a liberação dos afetos no exercício de respiração, ou seja, da cólera e da angústia, que são os afetos primitivos, não havia progresso.

É da energia liberada pela respiração que surge o movimento, ora involuntário, ora voluntário, como expressão de um gesto genuíno. É exatamente com a prática desse exercício que o aluno-ator consegue uma maior autenticidade na sua expressão condicionada, prejudicada pelos pontos de tensão, pela couraça muscular. Quando se respira um por dois, ou seja, inspirando uma vez pelo diafragma, fazendo um silêncio, uma suspensão na respiração, e expirando em duas vezes, promove-se uma “limpeza” não somente nas vias respiratórias, como também em todo o organismo, ativando o processo biológico e retirando as impurezas que possam alojar-se no organismo. Reich tem estudos médicos que comprovam que a respiração curta, que nem lembramos que fazemos, além de ser um retrato de funções psicológicas equivocadas refletem no funcionamento do organismo, podendo causar muitos males e muitas doenças.

Quando o aluno-ator descobre os seus movimentos que surgem dessa respiração, por estar de olhos fechados, consegue ter a percepção de novos gestos e de onde vieram esses gestos. É claro, que somente o tempo e a prática conseguem fazer do aluno-ator um praticante consciente e perceptivo de seu corpo, tomando para si suas travas corporais e ao mesmo tempo expressando seu gesto autêntico. Ele treina seu corpo a fazer o que quiser com ele, desde a cópia, imitação mais autêntica, até a composição mais verdadeira. A ação muscular, de onde partem os gestos deve ser liberada e ela está carregada de sentimentos e sensações bloqueadas, representadas pelas couraças musculares. O que se pretende é encontrar um meio de desbloqueio corporal, da busca por uma expressão mais consciente e autêntica para o próprio aluno, principalmente, e depois para o ator.

Como a descoberta de Reich foi feita por mim num ambiente profissional, pude constatar que se o ator profissional se submetesse a essa técnica preparatória, poderia lucrar muito no seu desempenho. A consciência corporal se dá por meio da respiração, da liberdade que surge no movimento aleatório, na concentração que remete o ator ao seu interior. Nessa busca pelo gesto mais autêntico e consciente surge a composição física, deixando a composição emocional para o jogo, para o encontro com o outro.

Para Darwin e depois Delsarte, a expressividade, seja nos homens ou nos animais, é “inata ou hereditária”, sendo a influência do meio e o papel da educação limitados. Delsarte perseguia o gesto autêntico, sendo o primeiro a estudar a dinâmica do gesto, sua estrutura e concebendo a ciência do movimento expressivo e sua maneira de ser. A busca de conhecermos nosso corpo e seu funcionamento, sua expressividade no mundo, compete não só aos atores e professores, mas a todos que se interessem em buscar a harmonia de sua linguagem corporal, para sua expressividade ser mais autêntica, mais genuína.

As regras estabelecidas, tanto para o jogo como para a convivência e vivência desse grupo, os exercícios de respiração, o aluno-ator mais relaxado, mais disponível para realizar os jogos, os grupos então se formam. Primeiro aleatoriamente, sabendo que sempre farão um “rodízio” dentro de cada grupo. Um tema é colocado como desafio, uma notícia de jornal, um fato da realidade, ou simplesmente um sentimento para ser explorado pelo grupo, para ser trabalhado, discutido. Com a estrutura de Viola explicada anteriormente (quem, onde e o quê) fica fácil montar uma pequena cena sem falas, pois a preocupação é mostrar aos alunos-observadores a visão do grupo sobre o tema. Para eles as discussões eram infinitas, primeiro sobre o tema, todos queriam opinar, depois sobre a forma da apresentação. Cada grupo escolhia um estilo, porém o que predominava em quase todos os grupos era a presença de um, às vezes mais, personagem cômico. Mesmo quando o enredo era dramático, havia essa presença que provocava risos nos alunos-observadores e descontraia o grupo. Isso tornava a aula divertida e a preocupação na execução dos temas fluía prazerosamente, sem prejudicar os objetivos, pois não faziam graça por fazer, ao contrário, era tudo elaborado, pois é muito difícil fazer rir uma plateia. Nunca houve abusos com o uso da comicidade, como resvalar para a gozação simplesmente, ou fazer graça pela graça, o que se torna sem graça. Acredito que isso tenha surgido sempre, em todas as Oficinas, porque nossa raiz cômica é muito acentuada e temos facilidade também, para a elaboração de histórias, para a construção do improviso como queria Perrucci.

Antes de se pretender municiar o aluno-ator de técnicas de representação, o mais relevante é o processo de desconstrução da própria pessoa. A exposição que a respiração Reichiana e os jogos propõem tornam-na tão vulnerável que é preciso cuidado nesse aprofundamento. Talvez os chamados “grupões”, promovidos ao final de aula, possibilitassem que todos pudessem expressar, verbalizar, ordenar logicamente em linguagem comum o que havia ocorrido com cada um naquela aula. Ali era mostrado se havia o processo em curso ou não, o verdadeiro conhecimento de si e uma tomada de consciência de si mesmo, embora ainda tênue. Com o passar do tempo já se iniciava a desconstrução do mundo, a formação de uma pequena crítica ao que ocorria ao seu redor, o que era passível de modificação em si mesmo e no mundo. Se não ocorre esse despertar de uma pequena consciência, não pode haver a consciência social de si mesmo no mundo, não pode haver ator. Se não for possível despertar esse ser para que se interesse pelo que acontece em si mesmo e no mundo, como poderá um dia preparar um papel, analisar um personagem? Como poderá fazer uma leitura histórica do texto, uma análise aprofundada de um dado momento histórico da peça? É por isso que discutíamos tanto nesses “grupões”, às vezes transcendíamos aos comentários dos exercícios e eram então enfocados os problemas de cada um. O mais importante é que falávamos de nós mesmos, seres humanos, e de nossa realidade - o material mais precioso para um ator.

Em grupos mais adiantados propunha uma construção de exercício baseado nos personagens por eles criados e fazia uma variação do “jogo da verdade + gênese do personagem”. O que ocorre nesses casos, e já fiz muito isso, é que nessa gênese se fala sempre do que o personagem gosta, ou não, ou seja, dos seus sentimentos. Nossa gênese era diferente e chama-se gênese social do personagem; por meio de perguntas sobre a vida do personagem, como exemplo: de quem era filho, onde morava, no que trabalhava, se estudava, enfim tudo aquilo que ele fazia. Era proibido usar a palavra gostar ou do que o personagem gosta. Ao final o personagem estava construído e seus gestos e sentimentos também, provando assim ser o homem o produto de seus pais e do meio em que vive. Tudo para mostrar a necessidade de um novo corpo para esse personagem, de novas atitudes, de um novo movimento e gesto para ele. Se isso pode ilustrar o “gestus” teatral de Brecht, poderia até ousar dizer que sim, cria, para o ator, novos horizontes onde alicerçar seu personagem. Os tipos da Commedia dell’Arte eram baseados nos gestos de cada tipo que eles criavam. Na relação de Darwin, exposta no capítulo II, sobre a expressão das emoções, são gestos inatos que ali estão, os aprendidos vem da vida, do trabalho que exerce, do local onde está, assim como os próprios tipos da Commedia dell’Arte. Também para Barrault, para quem existe a atitude, o gesto e a indicação, sendo a atitude construída, para expressar um gesto mostrando o seu significado.

A partir do desenvolvimento corporal do ator, ele pode encontrar dentro de si as emoções de que necessita. É no corpo, estão lá escondidos os sentimentos desse personagem. Se o corpo não é trabalhado primeiro, se não tem uma constante e um hábito de exercícios, nada pode brotar dele, nenhuma expressão, seja fala, seja emoção. Corpo e fala, texto e sentimentos, tudo está interligado, não há um teatro só corporal ou só declamatório, há sim um ator bem preparado física, psicologicamente para realizar o personagem.

O ator da Commedia dell’Arte tinha como princípio de preparação corporal a acrobacia. Como todos faziam de tudo, tinham a vantagem de se exercitarem de todas as maneiras. A acrobacia ajudava-os nas improvisações, na agilidade que o corpo tinha residia a agilidade das falas a serem ditas, baseadas no fio condutor da história, muito parecido com nossos jogos teatrais de Viola. Hoje, com nossa vida tão confortável temos tantas dificuldades em promover uma improvisação e no entanto, aqueles atores, com condições tão precárias produziam tanto. Acredito que se deva despojar cada vez mais no teatro para que possa haver mais produção artística. Partir-se do mais elementar e simples para se chegar à raiz, ao cerne do que se quer transmitir. Nisso a respiração Reichiana ajuda ao aluno-ator a ter um contato consigo mesmo, conhecendo melhor seu próprio corpo e sua própria mente, seus sentimentos e seus bloqueios. Se Garrick não houvesse ousado nos gestos, o teatro seria declamatório até hoje. Não teríamos as lições de Decroux e Barrault, Delsarte e a reflexão sobre Darwin.

Se não há uma filosofia que sirva de alicerce para uma proposta ela simplesmente não existe. A filosofia que rege esta proposta, que na verdade é mais uma prática de várias teorias, é o ensino como forma de despertar o aluno-ator para que procure o porquê de estar trilhando esse caminho, por que ser ator? Já que hoje em dia qualquer um é ator, qualquer um sobe num palco e de repente está na televisão e no cinema, é preciso querer saber por que alguém quer ser ator. Talvez pela ilusão do dinheiro fácil e da fama, os cursos de teatro iniciem suas classes tão repletas de jovens e ao longo do tempo, quando percebem que ser ator requer aprendizado e treinamento duro como qualquer outra profissão, vão embora decepcionados pela disciplina e ao mesmo tempo delicadeza e cultura que envolvem nossa arte. A filosofia de ter o cuidado com essas Oficinas que mais são pré-escolas, jardins da infância teatral para tantos jovens. Essa é a grande preocupação, o contato dos jovens com o teatro pela primeira vez, a experiência de uma vivência coletiva que em 10% dos jovens resultará em carreira artística, mas e o restante? Vieram em busca de um grupo onde pudessem sair diferente, é o que todo mundo almeja de um curso e era o que Brecht dizia sobre um espetáculo. Se o aluno-ator puder se modificar um pouco que seja, já será uma grande vitória, a proposta terá uma filosofia, pois terá cumprido uma função social e individual. Em nossas Oficinas no coletivo, todos saíram com alguma opinião, nunca houve indiferentes. Individualmente, muitos são amigos até hoje, estão batalhando a carreira artística e adquiriram bons hábitos, lêem teatro, assistem teatro e criticam teatro! Acredito que essa modificação – uma nova visão de mundo se dê, em parte, com o trabalho de respiração e movimento de Reich, que funciona quase como um estímulo, uma preparação para os jogos. Os jogos viram uma grande brincadeira organizada, onde a criação do aluno-ator é exigida. A formação dos pequenos grupos, onde há a possibilidade do diálogo e discussão, de posicionamento de opinião, é extremamente rico para o aluno-ator, principalmente o jovem e adolescente que quer ter o direito de se expressar. O tema pode ser abstrato, ou uma atividade do cotidiano ou mesmo uma notícia de jornal, pouco importa. Certamente guardará tudo isso dentro de si, vai compartilhar com os colegas do pequeno grupo o que expressará somente com o corpo no jogo, por isso seu esforço é o de manipular informações, o esforço a que se refere Perrucci, do ator que improvisa ter as qualidades do poeta em elaborar a história e a expressão perfeita dessa história, quando não há texto prévio, e no nosso caso sem falas, o corpo é o grande veículo de contar histórias.

Acredito que somos um povo privilegiado em manifestações corporais, em danças e com um teatro cômico muito rico em textos e autores. Embora nossa herança européia seja extremamente marcante até hoje, devemos procurar nossas raízes para aí sim estabelecer nossa filosofia. Buscar nossa própria maneira de atuar, criar nossa própria linguagem, os alunos-atores têm menos medo do ridículo do que muitos atores profissionais. Tentar a comédia “seriamente” com vontade e determinação, retomando os clássicos, que não são conhecidos dos alunos-atores, nem de atores profissionais, seria uma saída. Tentar o corpo na comédia, que se desenvolve e se mostra mais solto, não ter medo de ousar ser nacional é o grande desafio que nos impõe o ensino do teatro. Senão, para quê ensinar teatro e formar atores? É preciso transmitir a eles que o teatro é uma arte nacional, exatamente, devido ao idioma. Se retirarmos o texto em nosso idioma do teatro, não conseguimos compreender quase nada. Quando se mostra um espetáculo de um determinado país, temos sempre a barreira do idioma, podemos apreciar tudo, porém se não sabemos um pouco da história perdemos a mensagem que nos era dirigida. O teatro é uma arte nacional, é preciso procurar aprender a representar com os nossos textos, aprender a dominar a nossa dramaturgia, a estudar nossos atores e diretores, nossa história, somente assim teremos nosso estilo de representar. Como diz Dario Fo...” um povo sem cultura é um povo sem dignidade, despreocupado com suas raízes, portanto sem desejo de se libertar e ainda menos de combater”. [1]  

Resolvi adotar o termo vivência, para minhas Oficinas, porque define bem o limite entre o teatro e a terapia. Nas Oficinas lidamos com o ser humano e suas fraquezas; tomamos, todos nós alunos e professores, contato com regiões escondidas de nós mesmos. Uns mais outros menos, porém todos se abriram um pouco mais ao mundo durante as Oficinas, ao outro e a si mesmo também. Por meio da respiração reichiana, ou dos jogos, tenho a certeza de que houve um momento em que a consciência e a liberdade se encontraram. Alguns atores quando concebem um personagem chamam a isso de “magia”, acredito que não há nada de mágico nisso, apenas empenho, técnica, consciência e vivência.

Quando me utilizo da palavra consciência resumo nela todas as percepções, desde os cinco sentidos até a intuição, passando pelo intelecto e sentimento, reunidas numa única sensação de estar aqui agora, ser plenamente. É muito difícil conseguir isso, que mais se aproxima de técnicas de meditação transcendental tibetanas, porém como somos ocidentais podemos ser mais originais adaptando essa sensação. Essa noção de consciência é muito importante para nós de teatro, assim como é sempre citada desde a psicologia até a espiritualidade. O treino para isso requer muito domínio de si, muito controle, paradoxalmente muita liberdade interna e externa. Ser presente, estar presente globalmente, interagindo com o outro e com o ambiente, esta é a essência da vivência. Num tempo determinado poder explorar todo o corpo do aluno-ator, fazendo com que se desenvolva mais harmoniosamente com o ambiente, se integrando socialmente, também, porque atualmente as pessoas mal falam umas com as outras. Enfim, tudo é vivência, quando falamos do espaço onde trabalhamos sempre há uma menção ao reconhecimento do espaço, da sala onde temos aula. Muito bem, tento transcender, e todos do CCSP acostumaram-se a isso - levar os alunos nos arredores de nossa sala situá-los quanto a possíveis saídas, perguntar por onde entraram, enfim, até municiá-los para uma saída de emergência, porém tudo feito já se aplicando consciência no sentir a si mesmo executando a tarefa, observando o local, sentindo o espaço e a si mesmo no espaço. Nenhuma novidade, apenas empenho na execução.

Diderot antigamente e Yoshi Oida hoje, ator e professor japonês para usar da contemporaneidade, enfatizam em todos os seus textos de que a emoção acontece para o público, através da atitude do ator e quanto mais essa atitude for trabalhada racionalmente em seus menores detalhes, aí haverá interpretação. Barrault cita a atitude também como justificativa e intenção do gesto. Mas como desenvolver essas noções tão similares no aluno-ator? Poderemos pensar apenas numa semente a ser jogada para que ele se interesse ou não por tudo isso. Os resultados nos dizem que sim, ele aceita para sua própria vida, então isso já é muito. Consegue colocar em prática a consciência de seu corpo e com isso modificar algumas atitudes, o que não é nada fácil. Todas as nossas emoções se ancoram no corpo, é com ele e somente com ele que podemos construir algum gesto, buscar o que nos falta. Quando nosso corpo adoece percebemos a massa que ele ocupa no espaço, pois dói aqui e ali e ele nos parece enorme com essa dor. Nada disso é verdade, é apenas a ilusão de quem nunca percebeu seu corpo.

A consciência corporal se dá em exercícios simples do dia a dia, de flagrar-se a si mesmo no banho, de perceber-se andando na rua ou dentro de casa. Obviamente a respiração reichiana ajuda muito, porque ela nos “treina” a percebermos nosso corpo numa situação mais peculiar que é respirando e oxigenando todo corpo. Andar na rua, prestar atenção no seu próprio corpo, no espaço a sua volta e nas pessoas é um exercício completo para o aluno-ator e para todo mundo que queira aproveitar a vida. A assim chamada consciência corporal nada mais é do que estar presente e ser o agente do seu corpo. A maior parte das queixas em consultórios ortopédicos é de dores causadas por má postura, ou seja, basicamente ausência de consciência corporal. Certamente, não podemos ter o controle completo quanto às anomalias que surgem, mas podemos ter a consciência de suas causas e tentar modificar alguns hábitos.

Tais relatos podem servir para experiências como essa das vivências teatrais em oficinas, cursos rápidos e de iniciação teatral. Tentar desenvolve-los, instigar no aluno-ator o despertar de sua consciência, levando-os a trabalharem mais com seus corpos, não somente no sentido da atividade física, mas da consciência dessa mesma atividade.

A fim de ratificar e melhor esclarecer minha proposta, exponho a metodologia surgida desta práxis, uma forma apenas de organizar as idéias aqui contidas e já por vezes mencionadas. Na verdade, estas idéias são passíveis de interpretação, de modificações, pois a prática em sala de aula com um grupo é diferente a cada dia, assim como é diferente entrar em cena a cada dia.

Sempre que penso no conteúdo de uma Oficina, lembro-me, imediatamente, dos possíveis participantes dela. Por isso, a primeira coisa que faço é uma entrevista com eles, coletiva ou individual. Sem um trato especial, diferenciado com o participante, ele só se sente mais um número a preencher aquele curso. Mas quando ele conhece o professor, o espaço, o conteúdo, tudo fica mais fácil, a primeira aula torna-se um segundo encontro do grupo, todos estão relaxados e já se conhecem.

Isto já faz parte da filosofia desta proposta, estabelecer sempre uma relação de cuidado com o outro, de humanização, de recuperação de um relacionamento perdido. O respeito à sala de aula, seja ela qual for, começa com um relacionamento do grupo.

Se a preocupação pedagógica é formar consciência a fim de gerar uma filosofia, podemos nomear esse primeiro momento de consciência de base, que é aquela que se desenvolve mais no primeiro dia de aula e também ao longo do curso. É a consciência básica de qualquer ser humano que queira se comportar com um mínimo de educação e civilidade. Normas simples de respeito ao ambiente e aos outros. Explicadas as razões dos comportamentos, todos aceitam e utilizam, porque fazer coisas sem razão é muito difícil. É preciso incutir a ideia de que qualquer lugar pertence a nós e de que qualquer pessoa é nossa companheira de jornada.

As nossas vivências são como ensaios, não podem se presenciados por ninguém, por isso o grupo requer privacidade, porque tanto os exercícios iniciais como os de grupo podem inibir bastante os participantes no início. A respiração reichiana, sendo um exercício individual, promove o relaxamento e a descontração do aluno-ator, portanto, qualquer interferência pode prejudicar o processo. Por isso, essas aulas não podem ser exibidas diante de uma platéia.

O meu objetivo enquanto orientadora é verificar as travas corporais de cada um, os “nós” a serem indicados para serem desfeitos, como também a capacidade de cada um de se concentrar apenas em seu corpo. Vale salientar que o intuito é meramente de observação para a atuação teatral e não como análise terapêutica. As orientações posteriores à vivência, quando conseguimos dar, são em prol de um corpo melhor para o ator. Se for dado ao aluno-ator todos os elementos a serem explorados por ele, se é desvendado a ele toda a história da respiração, ele pode aproveitar muito mais.

Acredito que após esse breve exercício o aluno-ator está mais relaxado para enfrentar o grupo, apresentar-se, falar um pouco de si mesmos. E reiterando a minha convicção de que primeiro cuidamos do ser humano, depois do ator, vamos trabalhar com os jogos teatrais, da nossa maneira brasileira, conforme o perfil de cada grupo. Se tiver um grupo mais de pré-adolescentes, explorar seu universo é muito interessante e proveitoso.

Se o grupo é mais de jovens, exploro mais nossos problemas cotidianos, a realidade de nosso país. Os grupos são sempre heterogêneos, há aspirantes a ator, estudantes, advogados recém-formados, enfim uma gama de profissões, que se misturam, dando sempre um bom resultado.

Precisamos ser bons, independentemente de uma religião, mas desenvolver uma humanidade de ser bom, uma natureza boa. Isso é preciso desenvolver no grupo em primeiro lugar para poder gerar união, fazendo com que todos aceitem a todos, sem distinção.

Creio que o corpo e a de consciência corporal ajudam no sentido de conhecermos nossa natureza, aquela que está mais próxima de nós que é o nosso corpo. Este seria o segundo momento, o da consciência corporal, os já expostos exercícios do dia a dia, os quais são mais eficientes do que aulas e mais aulas. Desenvolver a consciência espacial, as dimensões do lugar onde estou, as dimensões do meu corpo.

Logo após ter conhecimento de seu corpo, seja através do exercício de respiração, solitário, ou através dos exercícios em grupo, com o outro, vem agora à consciência espacial. Onde estou? Que lugar ocupo, como ocupo? Como eu ando? Pois dentro do exercício em grupo, o aluno-ator sente-se desconfortável, sente-se sem a dimensão do espaço, quanto ele ocupa dele, onde está seu colega, a que distância. Acredito que os exercícios, baseados no esquema de Viola Spolin mantêm sua estrutura primordial, porém são modificados a cada grupo, como já mencionei, respeitando as necessidades sociais, culturais e econômicas de cada participante. Na consciência espacial voltamos à consciência de base, pois duas pessoas não sentam na mesma cadeira, é preciso ver, estar presente nesse ver, observar o espaço que você ocupa e o espaço ao seu redor. Como é esse espaço? Voltamos à consciência corporal que inclui a consciência espacial.

Surge, então, a reflexão no exercício de sua situação social, o aluno-ator consegue ver sua vida, às vezes por meio da ajuda do outro participante do grupo. Essa consciência se expande em consciência histórica, fazendo com que sua reflexão, que se iniciou apenas na sua própria constatação de sua condição social e situação social, se expanda a uma consciência do próprio processo histórico, da realidade como mudança, da sua vida significando transformação.

O exercício, o jogo teatral dá essa possibilidade de “despertar” para uma realidade que é proposta pelo próprio aluno-ator, como tema e que, à vezes, se modifica dentro do exercício. Sem intervenções do professor-orientador, somente opiniões da “plateia” de alunos, os grupos que apresentam guardam para si mesmos experiências pessoais que modificaram suas vidas, como quase todos os relatórios, contidos no Anexo, podem atestar.

A consciência histórica promove no aluno-ator uma visão da sua situação em sua realidade social. A visão do todo e a constatação da possibilidade de mudança, nem que seja a sua interioridade. O exercício que lida com situações sociais vai promover isso no aluno-ator naturalmente, sem levantar bandeiras. É preciso desenvolver no aluno-ator sua consciência voltada ao seu tempo, bem como ao seu passado e seu futuro. Situar sua profissão historicamente, saber do por que ser ator hoje.

Trabalhamos com a respiração e o corpo, primeiramente, depois no jogo envolvemos corpo e mente, aparecem a atitude e o gesto e permitem que a emoção vá permeando todo trabalho no jogo, ela vai aflorando e sendo reconhecida pelo participante sem traumas ou violências. A consciência emocional é aprender a entrar em contato com seus próprios sentimentos, a reconhecê-los e aprender a conviver com eles; é como ter consciência corporal, você pode não mudar o “defeito” de imediato, mas sabe que ele está ali, o que antes não era possível. O campo da emoção é muito delicado, talvez por isso ele não seja tão enfatizado numa Oficina, porém, somos emoção, é impossível separá-la de nossos atos. O cuidado com o aluno-ator reside no fato de que precisamos lidar com todos os seus lados, com suas inúmeras facetas, porém com tranquilidade.

Sempre que tocamos na emoção nos embrenhamos na memória e, também, na liberdade, questões muito delicadas a qualquer ser humano, porém, material precioso ao ator. A emoção que promove a intenção que juntamente com a atitude, que provém da razão, da análise e da compreensão, fazem a ação. Ação que se dá no gesto social que retrata a realidade e a fisicaliza. A dinâmica entre emoção e razão faz brotar no ser humano o olhar crítico, ao perceber a realidade distanciada de si mesmo.

Para o aluno-ator iniciar-se no teatro tem de ser motivo de desenvolvimento de sua percepção social, porque somente daí ele poderá construir seu personagem ao mesmo tempo em que enriquece sua personalidade.            

Um aluno-ator não se reconhecendo em seu próprio meio, não consegue subsídios para enfrentar um trabalho teatral. O reconhecimento de sua própria realidade requer percepção social e histórica, que alguns adquiriram na escola, por meio de professores interessados na formação de consciência. O interesse na consciência social e histórica, ou seja, qual a realidade social e histórica do momento em que vivo, da minha família, do meu bairro, da minha cidade, do país e do mundo.

Isso posto o método consiste em que o aluno-ator não só adquira uma maior reflexão sobre si mesmo, como tenha material suficiente para os temas dos jogos. Tudo o mais depende disso – sua atitude corporal, seu gesto emocional, seu gesto social, sua atitude espacial. Todo material que é trabalhado durante uma Oficina vem da primeira reflexão feita pelos participantes.

O que este método pretende é sempre aprofundar a reflexão sobre si mesmo, trazer à consciência o aluno-ator, talvez até destruindo um pouco seu primeiro desejo de ser ator, porém tentando convence-lo a aprofundar seu ser, mergulhar em si mesmo, reconhecendo sua condição e acima de tudo, aceitando-a, para até, se preciso for, modifica-la. Daí para ele ser ator ou não ator, acredito que muitos caminhos já tenham sido abertos.


Para melhor racionalizar a linha de ação em sala de aula, foi feito o esquema da página seguinte.


                     
                                                                            
                    
ETAPAS de uma vivência
Para o ALUNO
Para o PROFESSOR
RESULTADOS ESPERADOS
Primeira: com duração de 30 min.
Respiração – é muito importante o contato do aluno-ator consigo mesmo.
Explanação exata da respiração, para que não haja danos em ninguém.
Desenvolver a concentração em si mesmo.
Segunda: com duração de 60 min., com um intervalo de dez min.
Jogo – reaprender a brincar, aprender a jogar, se ver no jogo.
Ser apenas o orientador do jogo, incentivar.
Interação dos alunos, cumplicidade.
Terceira: com duração de 30 min.
Grupão – é hora de debater e conversar. Análise e críticas dos trabalhos apresentados.
Manter-se calada (o) o quanto puder, apenas orientando o debate.
Revelar, aprender a argumentar e denunciar.



[1]FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. Org. Franca Rame. SP, Ed. Senac, 1998, pg. 67


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