Acredito
que um grupo de trabalho, seja para qualquer oficina, que se encontra pela
primeira vez carece de alguma forma de exercício de integração, a fim de que os
participantes e professor possam se conhecer e se integrar, criando um ambiente
específico para o grupo. Como primeiro procedimento costumo reunir o grupo em
um imenso círculo, no caso desses grupos, onde todos possam ver a todos. Ao
sentarem-se, já se percebe aquele mais tímido, que se esconde atrás do outro,
ou aquele que já se coloca com um sorriso, olhando atentamente o professor. Ao
me colocar na roda, após uma rápida apresentação de todos, estabeleço
claramente as regras para nosso trabalho, sabendo que elas poderão contribuir
para o sucesso e o bom desempenho de todos. Coloco-me como organizadora, não
como professora. Lembro sempre, porque acredito, que a organização natural e
observadora das necessidades dos outros, não é nada pesado ou difícil de
cumprir. Se olharmos o outro como companheiro de jornada, tudo ficará mais
fácil, se fizermos cumprir nossas regras, seremos todos responsáveis por nossas
falhas. Não eram muitas as exigências, mas deveriam ser cumpridas à risca: horário
para início e término; evitar ao máximo faltar; interesse, mesmo que o desafio
seja grande; todos ajudarem a todos. Não estabelecido o fator competição, todos
começavam a relaxar, ao mesmo tempo em que sabiam que tinham um ambiente
acolhedor. Parece-me que aos adolescentes tudo isso parecia o paraíso, pois não
tinham toda essa atenção em casa ou na escola, todo esse ritual, todas essas
regras a cumprir, porém regras que não invadiam sua privacidade, ao contrário,
deixavam uma larga margem de liberdade. Se o teatro é feito de muita disciplina
e dedicação, também é feito com uma boa dose de liberdade, sem ela não há
criação. Essa liberdade, dentro da Oficina, era transmitida com muito humor,
por meio da brincadeira na hora certa.
Acredito
que os resultados obtidos nos exercícios e nos jogos, somente tenham sido
possíveis graças à introdução da aula baseada nos exercícios respiratórios e
movimentos de Reich. Toda aula tinha seu ritual, todos eram avisados a chegar
com 15 a 10 minutos de antecedência do horário previsto, a fim de se
prepararem, trocarem de roupa, irem ao banheiro ou mesmo descansarem um pouco
do longo percurso que a maioria fazia da periferia da cidade até o Centro
Cultural São Paulo. Tínhamos um aparelho de som que sempre nos era cedido e eu
levava as fitas conforme o tema da aula. Acredito que a mistura de estilos que
iam desde a música clássica, com coletâneas de adágios e minuetos,
principalmente Mozart e Bach, até músicas new age, inspiravam os alunos
a se concentrarem não na música, mas na respiração. Todos se colocavam de forma
a que pudessem me ver, afastados um do outro o tanto que o espaço oferecido
permitisse. Num primeiro momento, eu contava um pouco sobre Reich, sua técnica
terapêutica e a aproximação que essa técnica permitia para o desenvolvimento
corporal do ator. Explicava sempre que qualquer alteração deveria ser
comunicada, visto que algumas pessoas são mais sensíveis quando lidam com a
respiração. Perguntava de algum mal físico, doença crônica, para que eu pudesse
ter mais atenção nesse aluno e orientá-lo. Todos eram muito receptivos às
explicações e não pairavam dúvidas quanto aos três pontos básicos: tomar a
música apenas como fundo, para inspiração; não sair do seu lugar, mas
movimentar o corpo com os pés separados na medida de cada um; ficar de olhos
fechados o tempo todo e fixar-se, mesmo movimentando-se, o que não é nada
fácil, na inspiração em uma só vez e na expiração em duas vezes, fazendo uma
ligeira pausa antes da última e soltando-a como se quisesse empurrar o ar para
fora. O exercício durava em média cinco a dez minutos, em escala crescente nas
aulas que se seguiam, nunca excedendo vinte minutos. Sempre deixava bem claro
que os efeitos jamais seriam de “baixar o santo” ou de algum milagre, por isso
a consciência da realidade era primordial em todo tempo.
Ora,
o movimento junto à respiração, mesmo que essa seja esquecida às vezes e
retomada quando lembrada pelo professor, ia, pouco a pouco, soltando as travas
corporais que geralmente se alojam no adolescente, nos ombros e nas pernas. Nas
primeiras vezes era difícil começar, por isso o estímulo era pontuar esses
lugares onde geralmente se alojam as tensões, encorajá-los a mexer o corpo e
respirar, o que provocaria uma boa sensação. Motivá-los a não terem medo, porque
todos estavam de olhos fechados, portanto ninguém poderia ver ninguém, ninguém
poderia saber o que o outro estava fazendo.
Na
segunda vez eles já estavam um pouco mais soltos e já se conseguia definir
aquilo que Reich aponta como couraças musculares, aqueles lugares que eram
intocados pelo movimento, ali residia o traço. O corpo todo obedecia ao fluxo
da respiração, deixava-se enlevar pela música e o ritmo da respiração, mas o
foco, o traço principal permanecia intocado. Isso mostrava a constatação das dificuldades
que se dariam no jogo que viria a seguir. Muito raramente, pelo tempo exíguo
das Oficinas, alguém conseguia ultrapassar o traço e romper a couraça, sem se
dar conta disso, apenas notavam uma sensação de estar melhor fisicamente. E não
poderia ser de outro modo, não se tratava de uma terapia e não poderia haver
avaliações, apenas um encaminhamento e incentivo para que prosseguisse, caso
isso fosse solicitado.
Alguns
mal se moviam e expressavam um medo enorme em respirar, era uma pequena minoria
que também não conseguia se integrar nos jogos. Se não havia a liberação dos
afetos no exercício de respiração, ou seja, da cólera e da angústia, que são os
afetos primitivos, não havia progresso.
É
da energia liberada pela respiração que surge o movimento, ora involuntário,
ora voluntário, como expressão de um gesto genuíno. É exatamente com a prática
desse exercício que o aluno-ator consegue uma maior autenticidade na sua
expressão condicionada, prejudicada pelos pontos de tensão, pela couraça
muscular. Quando se respira um por dois, ou seja, inspirando uma vez pelo
diafragma, fazendo um silêncio, uma suspensão na respiração, e expirando em
duas vezes, promove-se uma “limpeza” não somente nas vias respiratórias, como
também em todo o organismo, ativando o processo biológico e retirando as
impurezas que possam alojar-se no organismo. Reich tem estudos médicos que
comprovam que a respiração curta, que nem lembramos que fazemos, além de ser um
retrato de funções psicológicas equivocadas refletem no funcionamento do
organismo, podendo causar muitos males e muitas doenças.
Quando
o aluno-ator descobre os seus movimentos que surgem dessa respiração, por estar
de olhos fechados, consegue ter a percepção de novos gestos e de onde vieram
esses gestos. É claro, que somente o tempo e a prática conseguem fazer do
aluno-ator um praticante consciente e perceptivo de seu corpo, tomando para si
suas travas corporais e ao mesmo tempo expressando seu gesto autêntico. Ele
treina seu corpo a fazer o que quiser com ele, desde a cópia, imitação mais
autêntica, até a composição mais verdadeira. A ação muscular, de onde partem os
gestos deve ser liberada e ela está carregada de sentimentos e sensações
bloqueadas, representadas pelas couraças musculares. O que se pretende é
encontrar um meio de desbloqueio corporal, da busca por uma expressão mais
consciente e autêntica para o próprio aluno, principalmente, e depois para o
ator.
Como
a descoberta de Reich foi feita por mim num ambiente profissional, pude
constatar que se o ator profissional se submetesse a essa técnica preparatória,
poderia lucrar muito no seu desempenho. A consciência corporal se dá por meio
da respiração, da liberdade que surge no movimento aleatório, na concentração
que remete o ator ao seu interior. Nessa busca pelo gesto mais autêntico e
consciente surge a composição física, deixando a composição emocional para o
jogo, para o encontro com o outro.
Para
Darwin e depois Delsarte, a expressividade, seja nos homens ou nos animais, é
“inata ou hereditária”, sendo a influência do meio e o papel da educação
limitados. Delsarte perseguia o gesto autêntico, sendo o primeiro a estudar a
dinâmica do gesto, sua estrutura e concebendo a ciência do movimento expressivo
e sua maneira de ser. A busca de conhecermos nosso corpo e seu funcionamento,
sua expressividade no mundo, compete não só aos atores e professores, mas a
todos que se interessem em buscar a harmonia de sua linguagem corporal, para
sua expressividade ser mais autêntica, mais genuína.
As
regras estabelecidas, tanto para o jogo como para a convivência e vivência
desse grupo, os exercícios de respiração, o aluno-ator mais relaxado, mais
disponível para realizar os jogos, os grupos então se formam. Primeiro
aleatoriamente, sabendo que sempre farão um “rodízio” dentro de cada grupo. Um
tema é colocado como desafio, uma notícia de jornal, um fato da realidade, ou
simplesmente um sentimento para ser explorado pelo grupo, para ser trabalhado,
discutido. Com a estrutura de Viola explicada anteriormente (quem, onde e o quê)
fica fácil montar uma pequena cena sem falas, pois a preocupação é mostrar aos
alunos-observadores a visão do grupo sobre o tema. Para eles as discussões eram
infinitas, primeiro sobre o tema, todos queriam opinar, depois sobre a forma da
apresentação. Cada grupo escolhia um estilo, porém o que predominava em quase
todos os grupos era a presença de um, às vezes mais, personagem cômico. Mesmo
quando o enredo era dramático, havia essa presença que provocava risos nos
alunos-observadores e descontraia o grupo. Isso tornava a aula divertida e a
preocupação na execução dos temas fluía prazerosamente, sem prejudicar os
objetivos, pois não faziam graça por fazer, ao contrário, era tudo elaborado,
pois é muito difícil fazer rir uma plateia. Nunca houve abusos com o uso da
comicidade, como resvalar para a gozação simplesmente, ou fazer graça pela
graça, o que se torna sem graça. Acredito que isso tenha surgido sempre, em
todas as Oficinas, porque nossa raiz cômica é muito acentuada e temos
facilidade também, para a elaboração de histórias, para a construção do
improviso como queria Perrucci.
Antes
de se pretender municiar o aluno-ator de técnicas de representação, o mais
relevante é o processo de desconstrução da própria pessoa. A exposição que a
respiração Reichiana e os jogos propõem tornam-na tão vulnerável que é preciso
cuidado nesse aprofundamento. Talvez os chamados “grupões”, promovidos ao final
de aula, possibilitassem que todos pudessem expressar, verbalizar, ordenar
logicamente em linguagem comum o que havia ocorrido com cada um naquela aula.
Ali era mostrado se havia o processo em curso ou não, o verdadeiro conhecimento
de si e uma tomada de consciência de si mesmo, embora ainda tênue. Com o passar
do tempo já se iniciava a desconstrução do mundo, a formação de uma pequena
crítica ao que ocorria ao seu redor, o que era passível de modificação em si
mesmo e no mundo. Se não ocorre esse despertar de uma pequena consciência, não
pode haver a consciência social de si mesmo no mundo, não pode haver ator. Se
não for possível despertar esse ser para que se interesse pelo que acontece em
si mesmo e no mundo, como poderá um dia preparar um papel, analisar um
personagem? Como poderá fazer uma leitura histórica do texto, uma análise
aprofundada de um dado momento histórico da peça? É por isso que discutíamos
tanto nesses “grupões”, às vezes transcendíamos aos comentários dos exercícios
e eram então enfocados os problemas de cada um. O mais importante é que
falávamos de nós mesmos, seres humanos, e de nossa realidade - o material mais
precioso para um ator.
Em
grupos mais adiantados propunha uma construção de exercício baseado nos
personagens por eles criados e fazia uma variação do “jogo da verdade + gênese
do personagem”. O que ocorre nesses casos, e já fiz muito isso, é que nessa
gênese se fala sempre do que o personagem gosta, ou não, ou seja, dos seus
sentimentos. Nossa gênese era diferente e chama-se gênese social do personagem;
por meio de perguntas sobre a vida do personagem, como exemplo: de quem era
filho, onde morava, no que trabalhava, se estudava, enfim tudo aquilo que ele
fazia. Era proibido usar a palavra gostar ou do que o personagem gosta. Ao
final o personagem estava construído e seus gestos e sentimentos também,
provando assim ser o homem o produto de seus pais e do meio em que vive. Tudo
para mostrar a necessidade de um novo corpo para esse personagem, de novas
atitudes, de um novo movimento e gesto para ele. Se isso pode ilustrar o
“gestus” teatral de Brecht, poderia até ousar dizer que sim, cria, para o ator,
novos horizontes onde alicerçar seu personagem. Os tipos da Commedia
dell’Arte eram baseados nos gestos de cada tipo que eles
criavam. Na relação de Darwin, exposta no capítulo II, sobre a expressão das
emoções, são gestos inatos que ali estão, os aprendidos vem da vida, do
trabalho que exerce, do local onde está, assim como os próprios tipos da Commedia
dell’Arte. Também para Barrault, para quem existe a
atitude, o gesto e a indicação, sendo a atitude construída, para expressar um
gesto mostrando o seu significado.
A
partir do desenvolvimento corporal do ator, ele pode encontrar dentro de si as
emoções de que necessita. É no corpo, estão lá escondidos os sentimentos desse
personagem. Se o corpo não é trabalhado primeiro, se não tem uma constante e um
hábito de exercícios, nada pode brotar dele, nenhuma expressão, seja fala, seja
emoção. Corpo e fala, texto e sentimentos, tudo está interligado, não há um
teatro só corporal ou só declamatório, há sim um ator bem preparado física,
psicologicamente para realizar o personagem.
O ator da Commedia
dell’Arte
tinha como princípio de preparação corporal a acrobacia. Como todos faziam de
tudo, tinham a vantagem de se exercitarem de todas as maneiras. A acrobacia
ajudava-os nas improvisações, na agilidade que o corpo tinha residia a
agilidade das falas a serem ditas, baseadas no fio condutor da história, muito
parecido com nossos jogos teatrais de Viola. Hoje, com nossa vida tão
confortável temos tantas dificuldades em promover uma improvisação e no
entanto, aqueles atores, com condições tão precárias produziam tanto. Acredito
que se deva despojar cada vez mais no teatro para que possa haver mais produção
artística. Partir-se do mais elementar e simples para se chegar à raiz, ao
cerne do que se quer transmitir. Nisso a respiração Reichiana ajuda ao
aluno-ator a ter um contato consigo mesmo, conhecendo melhor seu próprio corpo
e sua própria mente, seus sentimentos e seus bloqueios. Se Garrick não houvesse
ousado nos gestos, o teatro seria declamatório até hoje. Não teríamos as lições
de Decroux e Barrault, Delsarte e a reflexão sobre Darwin.
Se não há uma filosofia que
sirva de alicerce para uma proposta ela simplesmente não existe. A filosofia
que rege esta proposta, que na verdade é mais uma prática de várias teorias, é
o ensino como forma de despertar o aluno-ator para que procure o porquê de
estar trilhando esse caminho, por que ser ator? Já que hoje em dia qualquer um
é ator, qualquer um sobe num palco e de repente está na televisão e no cinema,
é preciso querer saber por que alguém quer ser ator. Talvez pela ilusão do
dinheiro fácil e da fama, os cursos de teatro iniciem suas classes tão repletas
de jovens e ao longo do tempo, quando percebem que ser ator requer aprendizado
e treinamento duro como qualquer outra profissão, vão embora decepcionados pela
disciplina e ao mesmo tempo delicadeza e cultura que envolvem nossa arte. A
filosofia de ter o cuidado com essas Oficinas que mais são pré-escolas, jardins
da infância teatral para tantos jovens. Essa é a grande preocupação, o contato
dos jovens com o teatro pela primeira vez, a experiência de uma vivência
coletiva que em 10% dos jovens resultará em carreira artística, mas e o
restante? Vieram em busca de um grupo onde pudessem sair diferente, é o que
todo mundo almeja de um curso e era o que Brecht dizia sobre um espetáculo. Se
o aluno-ator puder se modificar um pouco que seja, já será uma grande vitória,
a proposta terá uma filosofia, pois terá cumprido uma função social e
individual. Em nossas Oficinas no coletivo, todos saíram com alguma opinião,
nunca houve indiferentes. Individualmente, muitos são amigos até hoje, estão
batalhando a carreira artística e adquiriram bons hábitos, lêem teatro,
assistem teatro e criticam teatro! Acredito que essa modificação – uma nova
visão de mundo se dê, em parte, com o trabalho de respiração e movimento de
Reich, que funciona quase como um estímulo, uma preparação para os jogos. Os
jogos viram uma grande brincadeira organizada, onde a criação do aluno-ator é
exigida. A formação dos pequenos grupos, onde há a possibilidade do diálogo e
discussão, de posicionamento de opinião, é extremamente rico para o aluno-ator,
principalmente o jovem e adolescente que quer ter o direito de se expressar. O
tema pode ser abstrato, ou uma atividade do cotidiano ou mesmo uma notícia de
jornal, pouco importa. Certamente guardará tudo isso dentro de si, vai
compartilhar com os colegas do pequeno grupo o que expressará somente com o
corpo no jogo, por isso seu esforço é o de manipular informações, o esforço a
que se refere Perrucci, do ator que improvisa ter as qualidades do poeta em
elaborar a história e a expressão perfeita dessa história, quando não há texto
prévio, e no nosso caso sem falas, o corpo é o grande veículo de contar
histórias.
Acredito que somos um povo
privilegiado em manifestações corporais, em danças e com um teatro cômico muito
rico em textos e autores. Embora nossa herança européia seja extremamente
marcante até hoje, devemos procurar nossas raízes para aí sim estabelecer nossa
filosofia. Buscar nossa própria maneira de atuar, criar nossa própria
linguagem, os alunos-atores têm menos medo do ridículo do que muitos atores
profissionais. Tentar a comédia “seriamente” com vontade e determinação,
retomando os clássicos, que não são conhecidos dos alunos-atores, nem de atores
profissionais, seria uma saída. Tentar o corpo na comédia, que se desenvolve e
se mostra mais solto, não ter medo de ousar ser nacional é o grande desafio que
nos impõe o ensino do teatro. Senão, para quê ensinar teatro e formar atores? É
preciso transmitir a eles que o teatro é uma arte nacional, exatamente, devido
ao idioma. Se retirarmos o texto em nosso idioma do teatro, não conseguimos
compreender quase nada. Quando se mostra um espetáculo de um determinado país,
temos sempre a barreira do idioma, podemos apreciar tudo, porém se não sabemos
um pouco da história perdemos a mensagem que nos era dirigida. O teatro é uma
arte nacional, é preciso procurar aprender a representar com os nossos textos,
aprender a dominar a nossa dramaturgia, a estudar nossos atores e diretores,
nossa história, somente assim teremos nosso estilo de representar. Como diz
Dario Fo...” um povo sem cultura é um povo sem dignidade, despreocupado com
suas raízes, portanto sem desejo de se libertar e ainda menos de combater”. [1]
Resolvi adotar o termo
vivência, para minhas Oficinas, porque define bem o limite entre o teatro e a
terapia. Nas Oficinas lidamos com o ser humano e suas fraquezas; tomamos, todos
nós alunos e professores, contato com regiões escondidas de nós mesmos. Uns
mais outros menos, porém todos se abriram um pouco mais ao mundo durante as
Oficinas, ao outro e a si mesmo também. Por meio da respiração reichiana, ou
dos jogos, tenho a certeza de que houve um momento em que a consciência e a
liberdade se encontraram. Alguns atores quando concebem um personagem chamam a
isso de “magia”, acredito que não há nada de mágico nisso, apenas empenho,
técnica, consciência e vivência.
Quando me utilizo da palavra
consciência resumo nela todas as percepções, desde os cinco sentidos até a
intuição, passando pelo intelecto e sentimento, reunidas numa única sensação de
estar aqui agora, ser plenamente. É muito difícil conseguir isso, que mais se
aproxima de técnicas de meditação transcendental tibetanas, porém como somos
ocidentais podemos ser mais originais adaptando essa sensação. Essa noção de
consciência é muito importante para nós de teatro, assim como é sempre citada
desde a psicologia até a espiritualidade. O treino para isso requer muito
domínio de si, muito controle, paradoxalmente muita liberdade interna e
externa. Ser presente, estar presente globalmente, interagindo com o outro e
com o ambiente, esta é a essência da vivência. Num tempo determinado poder
explorar todo o corpo do aluno-ator, fazendo com que se desenvolva mais
harmoniosamente com o ambiente, se integrando socialmente, também, porque
atualmente as pessoas mal falam umas com as outras. Enfim, tudo é vivência,
quando falamos do espaço onde trabalhamos sempre há uma menção ao reconhecimento
do espaço, da sala onde temos aula. Muito bem, tento transcender, e todos do
CCSP acostumaram-se a isso - levar os alunos nos arredores de nossa sala
situá-los quanto a possíveis saídas, perguntar por onde entraram, enfim, até
municiá-los para uma saída de emergência, porém tudo feito já se aplicando
consciência no sentir a si mesmo executando a tarefa, observando o local,
sentindo o espaço e a si mesmo no espaço. Nenhuma novidade, apenas empenho na
execução.
Diderot antigamente e Yoshi
Oida hoje, ator e professor japonês para usar da contemporaneidade, enfatizam
em todos os seus textos de que a emoção acontece para o público, através da
atitude do ator e quanto mais essa atitude for trabalhada racionalmente em seus
menores detalhes, aí haverá interpretação. Barrault cita a atitude também como
justificativa e intenção do gesto. Mas como desenvolver essas noções tão
similares no aluno-ator? Poderemos pensar apenas numa semente a ser jogada para
que ele se interesse ou não por tudo isso. Os resultados nos dizem que sim, ele
aceita para sua própria vida, então isso já é muito. Consegue colocar em
prática a consciência de seu corpo e com isso modificar algumas atitudes, o que
não é nada fácil. Todas as nossas emoções se ancoram no corpo, é com ele e somente
com ele que podemos construir algum gesto, buscar o que nos falta. Quando nosso
corpo adoece percebemos a massa que ele ocupa no espaço, pois dói aqui e ali e
ele nos parece enorme com essa dor. Nada disso é verdade, é apenas a ilusão de
quem nunca percebeu seu corpo.
A consciência corporal se dá em
exercícios simples do dia a dia, de flagrar-se a si mesmo no banho, de
perceber-se andando na rua ou dentro de casa. Obviamente a respiração reichiana
ajuda muito, porque ela nos “treina” a percebermos nosso corpo numa situação
mais peculiar que é respirando e oxigenando todo corpo. Andar na rua, prestar
atenção no seu próprio corpo, no espaço a sua volta e nas pessoas é um
exercício completo para o aluno-ator e para todo mundo que queira aproveitar a
vida. A assim chamada consciência corporal nada mais é do que estar presente e
ser o agente do seu corpo. A maior parte das queixas em consultórios
ortopédicos é de dores causadas por má postura, ou seja, basicamente ausência
de consciência corporal. Certamente, não podemos ter o controle completo quanto
às anomalias que surgem, mas podemos ter a consciência de suas causas e tentar
modificar alguns hábitos.
Tais relatos podem servir para
experiências como essa das vivências teatrais em oficinas, cursos rápidos e de
iniciação teatral. Tentar desenvolve-los, instigar no aluno-ator o despertar de
sua consciência, levando-os a trabalharem mais com seus corpos, não somente no
sentido da atividade física, mas da consciência dessa mesma atividade.
A fim de ratificar e melhor
esclarecer minha proposta, exponho a metodologia surgida desta práxis, uma
forma apenas de organizar as idéias aqui contidas e já por vezes mencionadas.
Na verdade, estas idéias são passíveis de interpretação, de modificações, pois
a prática em sala de aula com um grupo é diferente a cada dia, assim como é
diferente entrar em cena a cada dia.
Sempre que penso no conteúdo de
uma Oficina, lembro-me, imediatamente, dos possíveis participantes dela. Por
isso, a primeira coisa que faço é uma entrevista com eles, coletiva ou
individual. Sem um trato especial, diferenciado com o participante, ele só se
sente mais um número a preencher aquele curso. Mas quando ele conhece o
professor, o espaço, o conteúdo, tudo fica mais fácil, a primeira aula torna-se
um segundo encontro do grupo, todos estão relaxados e já se conhecem.
Isto já faz parte da filosofia
desta proposta, estabelecer sempre uma relação de cuidado com o outro, de
humanização, de recuperação de um relacionamento perdido. O respeito à sala de
aula, seja ela qual for, começa com um relacionamento do grupo.
Se a preocupação pedagógica é
formar consciência a fim de gerar uma filosofia, podemos nomear esse primeiro
momento de consciência de base, que é aquela que se desenvolve mais no primeiro
dia de aula e também ao longo do curso. É a consciência básica de qualquer ser
humano que queira se comportar com um mínimo de educação e civilidade. Normas
simples de respeito ao ambiente e aos outros. Explicadas as razões dos
comportamentos, todos aceitam e utilizam, porque fazer coisas sem razão é muito
difícil. É preciso incutir a ideia de que qualquer lugar pertence a nós e de
que qualquer pessoa é nossa companheira de jornada.
As nossas vivências são como
ensaios, não podem se presenciados por ninguém, por isso o grupo requer
privacidade, porque tanto os exercícios iniciais como os de grupo podem inibir
bastante os participantes no início. A respiração reichiana, sendo um exercício
individual, promove o relaxamento e a descontração do aluno-ator, portanto, qualquer
interferência pode prejudicar o processo. Por isso, essas aulas não podem ser
exibidas diante de uma platéia.
O meu objetivo enquanto
orientadora é verificar as travas corporais de cada um, os “nós” a serem
indicados para serem desfeitos, como também a capacidade de cada um de se
concentrar apenas em seu corpo. Vale salientar que o intuito é meramente de
observação para a atuação teatral e não como análise terapêutica. As
orientações posteriores à vivência, quando conseguimos dar, são em prol de um
corpo melhor para o ator. Se for dado ao aluno-ator todos os elementos a serem
explorados por ele, se é desvendado a ele toda a história da respiração, ele
pode aproveitar muito mais.
Acredito que após esse breve
exercício o aluno-ator está mais relaxado para enfrentar o grupo,
apresentar-se, falar um pouco de si mesmos. E reiterando a minha convicção de
que primeiro cuidamos do ser humano, depois do ator, vamos trabalhar com os
jogos teatrais, da nossa maneira brasileira, conforme o perfil de cada grupo.
Se tiver um grupo mais de pré-adolescentes, explorar seu universo é muito
interessante e proveitoso.
Se o grupo é mais de jovens,
exploro mais nossos problemas cotidianos, a realidade de nosso país. Os grupos
são sempre heterogêneos, há aspirantes a ator, estudantes, advogados
recém-formados, enfim uma gama de profissões, que se misturam, dando sempre um
bom resultado.
Precisamos ser bons,
independentemente de uma religião, mas desenvolver uma humanidade de ser bom,
uma natureza boa. Isso é preciso desenvolver no grupo em primeiro lugar para
poder gerar união, fazendo com que todos aceitem a todos, sem distinção.
Creio que o corpo e a de
consciência corporal ajudam no sentido de conhecermos nossa natureza, aquela
que está mais próxima de nós que é o nosso corpo. Este seria o segundo momento,
o da consciência corporal, os já expostos exercícios do dia a dia, os quais são
mais eficientes do que aulas e mais aulas. Desenvolver a consciência espacial,
as dimensões do lugar onde estou, as dimensões do meu corpo.
Logo após ter conhecimento de
seu corpo, seja através do exercício de respiração, solitário, ou através dos
exercícios em grupo, com o outro, vem agora à consciência espacial. Onde estou?
Que lugar ocupo, como ocupo? Como eu ando? Pois dentro do exercício em grupo, o
aluno-ator sente-se desconfortável, sente-se sem a dimensão do espaço, quanto
ele ocupa dele, onde está seu colega, a que distância. Acredito que os
exercícios, baseados no esquema de Viola Spolin mantêm sua estrutura
primordial, porém são modificados a cada grupo, como já mencionei, respeitando
as necessidades sociais, culturais e econômicas de cada participante. Na
consciência espacial voltamos à consciência de base, pois duas pessoas não
sentam na mesma cadeira, é preciso ver, estar presente nesse ver, observar o
espaço que você ocupa e o espaço ao seu redor. Como é esse espaço? Voltamos à
consciência corporal que inclui a consciência espacial.
Surge, então, a reflexão no
exercício de sua situação social, o aluno-ator consegue ver sua vida, às vezes
por meio da ajuda do outro participante do grupo. Essa consciência se expande
em consciência histórica, fazendo com que sua reflexão, que se iniciou apenas
na sua própria constatação de sua condição social e situação social, se expanda
a uma consciência do próprio processo histórico, da realidade como mudança, da
sua vida significando transformação.
O exercício, o jogo teatral dá
essa possibilidade de “despertar” para uma realidade que é proposta pelo
próprio aluno-ator, como tema e que, à vezes, se modifica dentro do exercício.
Sem intervenções do professor-orientador, somente opiniões da “plateia” de
alunos, os grupos que apresentam guardam para si mesmos experiências pessoais
que modificaram suas vidas, como quase todos os relatórios, contidos no Anexo,
podem atestar.
A consciência histórica promove
no aluno-ator uma visão da sua situação em sua realidade social. A visão do
todo e a constatação da possibilidade de mudança, nem que seja a sua
interioridade. O exercício que lida com situações sociais vai promover isso no
aluno-ator naturalmente, sem levantar bandeiras. É preciso desenvolver no
aluno-ator sua consciência voltada ao seu tempo, bem como ao seu passado e seu
futuro. Situar sua profissão historicamente, saber do por que ser ator hoje.
Trabalhamos com a respiração e
o corpo, primeiramente, depois no jogo envolvemos corpo e mente, aparecem a
atitude e o gesto e permitem que a emoção vá permeando todo trabalho no jogo,
ela vai aflorando e sendo reconhecida pelo participante sem traumas ou
violências. A consciência emocional é aprender a entrar em contato com seus
próprios sentimentos, a reconhecê-los e aprender a conviver com eles; é como
ter consciência corporal, você pode não mudar o “defeito” de imediato, mas sabe
que ele está ali, o que antes não era possível. O campo da emoção é muito
delicado, talvez por isso ele não seja tão enfatizado numa Oficina, porém,
somos emoção, é impossível separá-la de nossos atos. O cuidado com o aluno-ator
reside no fato de que precisamos lidar com todos os seus lados, com suas inúmeras
facetas, porém com tranquilidade.
Sempre que tocamos na emoção
nos embrenhamos na memória e, também, na liberdade, questões muito delicadas a
qualquer ser humano, porém, material precioso ao ator. A emoção que promove a
intenção que juntamente com a atitude, que provém da razão, da análise e da
compreensão, fazem a ação. Ação que se dá no gesto social que retrata a
realidade e a fisicaliza. A dinâmica entre emoção e razão faz brotar no ser
humano o olhar crítico, ao perceber a realidade distanciada de si mesmo.
Para o aluno-ator iniciar-se no
teatro tem de ser motivo de desenvolvimento de sua percepção social, porque
somente daí ele poderá construir seu personagem ao mesmo tempo em que enriquece
sua personalidade.
Um aluno-ator não se
reconhecendo em seu próprio meio, não consegue subsídios para enfrentar um
trabalho teatral. O reconhecimento de sua própria realidade requer percepção
social e histórica, que alguns adquiriram na escola, por meio de professores
interessados na formação de consciência. O interesse na consciência social e
histórica, ou seja, qual a realidade social e histórica do momento em que vivo,
da minha família, do meu bairro, da minha cidade, do país e do mundo.
Isso posto o método consiste em
que o aluno-ator não só adquira uma maior reflexão sobre si mesmo, como tenha
material suficiente para os temas dos jogos. Tudo o mais depende disso – sua
atitude corporal, seu gesto emocional, seu gesto social, sua atitude espacial.
Todo material que é trabalhado durante uma Oficina vem da primeira reflexão
feita pelos participantes.
O que este método pretende é
sempre aprofundar a reflexão sobre si mesmo, trazer à consciência o aluno-ator,
talvez até destruindo um pouco seu primeiro desejo de ser ator, porém tentando
convence-lo a aprofundar seu ser, mergulhar em si mesmo, reconhecendo sua
condição e acima de tudo, aceitando-a, para até, se preciso for, modifica-la.
Daí para ele ser ator ou não ator, acredito que muitos caminhos já tenham sido
abertos.
Para melhor racionalizar a
linha de ação em sala de aula, foi feito o esquema da página seguinte.
ETAPAS de uma vivência
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Para o ALUNO
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Para o PROFESSOR
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RESULTADOS ESPERADOS
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Primeira: com duração de 30
min.
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Respiração – é muito
importante o contato do aluno-ator consigo mesmo.
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Explanação exata da
respiração, para que não haja danos em ninguém.
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Desenvolver a concentração em
si mesmo.
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Segunda: com duração de 60
min., com um intervalo de dez min.
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Jogo – reaprender a brincar,
aprender a jogar, se ver no jogo.
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Ser apenas o orientador do
jogo, incentivar.
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Interação dos alunos,
cumplicidade.
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Terceira: com duração de 30
min.
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Grupão – é hora de debater e
conversar. Análise e críticas dos trabalhos apresentados.
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Manter-se calada (o) o quanto
puder, apenas orientando o debate.
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Revelar, aprender a
argumentar e denunciar.
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