segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Hans Staden no país da antropofagia

 
TRECHOS CRÍTICA - O ESTADO DE SÃO PAULO – POR SÉRGIO VIOTTI – 20/06/1971
O título Hans Staden no país da antropofagia é enganoso, pois o público, apesar da publicidade dizer tratar-se de uma comédia musical (se bem que seja, na verdade, uma comédia com músicas), poderia imaginar tratar-se de algo bem mais sério do que a realidade comprova. Outro título poderia ser Hans Staden – as experiências sexuais de um luterano em Pindorama. Sem ser nada ofensivo, ele revelaria abertamente a natureza da comédia que Francisco Pereira da Silva escreveu inspirado muito mais naquilo que Staden não deixou documentado, do que na preciosa obra sobre os silvícolas brasileiros no século XVI.
Se pouca coisa é conhecida da vida de Staden, menos ainda sabemos nós a seu respeito. Sou da geração que leu, na infância, as suas peripécias recontadas por Monteiro Lobato, mas nunca tive ocasião de sequer folhear o relato de suas aventuras quatrocentonas (foi aprisionado pelos Tupinambás em 1554!) publicadas com um dos mais longos e deliciosos títulos de que se tem notícia: “Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no novo mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de Cristo, até que, há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, os conheceu e agora publica, aumentada e melhorada diligentemente pela segunda vez”. Assim, o meu contato com o Hans Staden de Francisco Pereira da Silva foi tão virginal quanto era (em parte) o próprio Staden que se viu envolvido em peripécias e malandrices profundamente contrárias à rigidez de sua formação luterana.
Isto já deve deixar perceber que o nosso Staden é visto mais ou menos pelo prisma daquele caipira ingênuo do filme Uma certa casa em Chicago, não deixando de ser menos divertido por causa disto. Aliás, toda a angulação histórica do seu contato com o Brasil é propositadamente distorcida para nos dar a impressão de que o contato entre colonizadores e silvícolas colonizados era o de um eterno festival proibitivo com sabor picante do que era, antigamente, publicado em inglês, entre capas verdes, por recatadas firmas editoras suíças.
Assim sendo, este Hans Staden visto pela Olympia Press pode ser uma surpresa para os historiadores, e um deleite para os incautos. Usando o adjetivo gozação com respeito positivo, não hesito em aplicá-lo à comédia de Pereira da Silva. Diz o autor que a escreveu em 66, antecipando-se assim ao irromper do tropicalismo entre nós. É, sem a menor dúvida, uma visão tropicalista de um episódio histórico e a montagem procura, de ponta a ponta, sublinhar esta característica (...).
Osmar Rodrigues Cruz não hesitou em aplicar à sua direção solturas e irreverências divertidas. E se há momentos em que a brincadeira fica hesitante é porque a própria estrutura da peça não o ajuda a avançar com a piada colorida. Mas tudo somado é um espetáculo visualmente rico, cheio de humor bem brasileiro, que talvez abra caminho para que voltemos para incidentes históricos e os transformemos em gostosas gargalhadas vividas em um teatro.