CRÍTICA O ESTADO DE SÃO PAULO – COLUNA PALCOS E CIRCOS – POR DÉCIO DE ALMEIDA PRADO - 19/10/1951
“Nossa Cidade”
A peça de Thorton Wilder apresentada no Teatro de Cultura Artística pelo “Grupo Teatral Politécnico”, com o seu arzinho modesto de quem não quer nada, é das apostas mais ousadas e mais bem sucedidas do teatro moderno. Não é brincadeira escrever sobre os assuntos mais graves e por isso mesmo menos originais, que interessam ao homem – o amor, a vida, a morte – sem cair no pedantismo nem na trivialidade. Pois eis o que consegue esta peça em que são estudadas com sensibilidade e graça coisas tão fugidias como as relações cotidianas entre pai e filho, marido e mulher.
“Nossa cidade” retrata apenas o infinitamente pequeno, mas acha sempre jeito de dar a entender que, afinal de contas, é este infinitamente pequeno que mais importa à humanidade. Visto em escala cósmica – Siriús é o planeta indicado – talvez o pequeno universo das nossas preocupações diárias pareça incrivelmente fútil. Mas haverá alguém tão insensato a ponto de se imaginar habitante de Siriús e não de “Grover’s Corners”, pacata cidadezinha norte-americana, tanto mais expressiva quanto mais vulgar?
Também como técnica, “Nossa cidade” é uma pequena obra-prima de engenho. Cada pormenor, em si insignificante, recebe um curioso e estranho sentido quando integrado no quadro geral da peça. Assim – para citar somente dois casos – as informações sábias do professor universitário, tão alheias, tão longínquas, podem muito bem significar a frialdade, a inumanidade de todo um tipo de conhecimento científico, como o simples vício de ler constantemente jornal em casa se transforma discretamente num traço a mais dessa profunda indiferença humana, com que atravessamos a vida.
Bertrand Russel diz que se deve desconfiar de todo filósofo incapaz de ilustrar as suas ideias com exemplos simples e comuns. Thornton Wilder não é propriamente filósofo. Mas pelo menos tem o segredo de dizer muito com pouca coisa, de uma forma irônica e poética.
“Nossa cidade” presta-se muito a espetáculo de amadores e de gente moça, como essa que integra o “Grupo Teatral Politécnico”. Diante de tantas convenções assumidas voluntariamente pelo autor, não nos custa nada admitir mais algumas, fingindo ver, naqueles quase adolescentes, senhores respeitáveis ou extremosas mães de família: tudo na peça é faz-de-conta engenhoso. Não precisamos acreditar piamente nesses pequeninos e humildes incidentes que se desfazem, juntamente com os cenários, como nos passes de mágica, ao menor sinal do diretor de cena; o que importa acima de tudo é tirar a lição de humanidade ou de poesia contida no texto. No fundo só há de fato um personagem – o diretor de cena – e tudo mais não passa de exemplificação convincente e saborosa, trazida à tona pela própria índole despreocupada da conversa.
A direção de Osmar Rodrigues Cruz e de J. E. Coelho Neto teve a grande habilidade de deixar a peça falar por si, sem nada dessa pretensão que costumamos encontrar no trabalho de alguns principiantes desejosos de se equiparar imediatamente a mestres da teatralidade como Ziembinski. As soluções encontradas para cada problema foram sempre as mais simples e apesar disso a comunicação com a platéia não se deixou de fazer ampla e cordialmente.
Também o desempenho dos artistas caracterizou-se pela ausência de qualquer afetação, e a sinceridade, na medida do possível, fez às vezes de técnica. Apenas faltou o que tem faltado muito freqüentemente ao nosso teatro amador. Desde os tempos anteriores ao TBC: menos timidez por parte dos atores, maior projeção das próprias personalidades. A discrição não é a única, nem a maior qualidade de um interprete. Neste ponto, o teatro carioca sempre nos deu exemplo de outra vitalidade, de outra confiança em si, de outra capacidade de exteriorização. É verdade que “Hamlet” e “Desejo” foram espetáculos dirigidos por profissionais. Mas os atores, em sua maioria, eram tão principiantes quanto os nossos. E, no entanto, que vigor na representação, que vozes poderosas, vozes que se impunham à nossa atenção do primeiro ao último minuto, obrigando-nos a permanecer presos ao palco. Os estreantes paulistas, ao contrário, balbuciam timidamente, representando em miniatura para uma sala imaginária de trinta ou quarenta pessoas no máximo. A esse defeito não escapam, muitas vezes, nem os próprios alunos da “Escola de Arte Dramática”, esquecidos de que a primeira qualidade, já não diremos artística mas profissional, do ator é falar naturalmente alto, como fazem todos os atores em todas as partes do mundo.
J. E. Coelho Neto foi o melhor intérprete da noite, com enorme vantagem sobre todos os seus companheiros. Pôs o público logo à vontade, temperando a natural bonomia do diretor de cena com uma pontinha de ironia discreta e subentendida. É o seu trabalho mais interessante até a data de hoje. A seguir vieram Maria Aparecida Moreira – sem contudo repetir integralmente a esplendida versão em inglês que fez, há tempos, do mesmo papel – Moisés Leiner e Fortuna Leiner, espirituosamente caricatural. Maria da Glória Falcão permanece ainda um pouco dura, um pouco convencional nas inflexões, em contraste com a flexibilidade, quase mole e largada de Luís Mazzarolo Neto. Nas primeiras cenas tais características não chegaram a perturbar a peça, mas o mesmo já não aconteceu com os momentos mais líricos do terceiro ato. Este ato foi, aliás, bem menos feliz que os outros em matéria de direção, não conseguindo evitar de todo certo sentimentalismo, certo tom patético, que não estava nas intenções de Thorton Wilder.