TRECHOS CRÍTICA - O ESTADO DE SÃO PAULO – POR SÉRGIO VIOTTI – 20/06/1971
O
título Hans Staden no país da
antropofagia é enganoso, pois o público,
apesar da publicidade dizer tratar-se de uma comédia musical (se bem que seja,
na verdade, uma comédia com músicas), poderia imaginar tratar-se de algo bem
mais sério do que a realidade comprova. Outro título poderia ser Hans Staden – as experiências sexuais de um luterano
em Pindorama. Sem ser nada ofensivo, ele
revelaria abertamente a natureza da comédia que Francisco Pereira da Silva
escreveu inspirado muito mais naquilo que Staden não deixou documentado, do que
na preciosa obra sobre os silvícolas brasileiros no século XVI.
Se
pouca coisa é conhecida da vida de Staden, menos ainda sabemos nós a seu
respeito. Sou da geração que leu, na infância, as suas peripécias recontadas
por Monteiro Lobato, mas nunca tive ocasião de sequer folhear o relato de suas
aventuras quatrocentonas (foi aprisionado pelos Tupinambás em 1554!) publicadas
com um dos mais longos e deliciosos títulos de que se tem notícia: “Descrição
verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no novo
mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de
Cristo, até que, há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua
própria experiência, os conheceu e agora publica, aumentada e melhorada diligentemente
pela segunda vez”. Assim, o meu contato com o Hans Staden de Francisco Pereira
da Silva foi tão virginal quanto era (em parte) o próprio Staden que se viu
envolvido em peripécias e malandrices profundamente contrárias à rigidez de sua formação luterana.
Isto já deve deixar perceber que o nosso Staden é
visto mais ou menos pelo prisma daquele caipira
ingênuo do filme Uma certa
casa em Chicago, não deixando de
ser menos divertido por causa disto. Aliás, toda a angulação histórica do seu
contato com o Brasil é propositadamente distorcida para nos dar a impressão de
que o contato entre colonizadores e silvícolas colonizados era o de um eterno
festival proibitivo com sabor picante do que era, antigamente, publicado em
inglês, entre capas verdes, por recatadas firmas editoras suíças.
Assim
sendo, este Hans Staden visto pela Olympia Press pode ser uma surpresa para os
historiadores, e um deleite para os incautos. Usando o adjetivo gozação com respeito
positivo, não hesito em aplicá-lo à comédia de Pereira da Silva. Diz o autor
que a escreveu em 66, antecipando-se assim ao irromper do tropicalismo entre
nós. É, sem a menor dúvida, uma visão tropicalista de um episódio histórico e a
montagem procura, de ponta a ponta, sublinhar esta característica (...).
Osmar
Rodrigues Cruz não hesitou em aplicar à sua direção solturas e irreverências
divertidas. E se há momentos em que a brincadeira fica hesitante é porque a
própria estrutura da peça não o ajuda a avançar com a piada colorida. Mas tudo
somado é um espetáculo visualmente rico, cheio de humor bem brasileiro, que
talvez abra caminho para que voltemos para incidentes históricos e os
transformemos em gostosas gargalhadas vividas em um teatro.