O meu primeiro contato com Wilhelm
Reich (1897/1957) foi quando cursava a Graduação em Filosofia na Pontifícia
Universidade Católica (PUC), pois inúmeras vezes o seu nome era citado. Foi um
médico, que muito influenciou o pensamento de sua época. A importância de Reich
no pensamento filosófico dava-se como contraponto a tudo o que já havia sido
pensado, pois ele atacava o comportamento não só do indivíduo, mas de toda a
sociedade. Por muito tempo Reich passou por meus olhos como textos escolhidos
dentro dos cursos, citações, até participar de um grupo de estudos com Plínio
Marcos, apaixonado e grande estudioso de Reich. Então, tive de estuda-lo,
aprofundando-me em sua obra. Apaixonei-me por Reich e então retornei a Freud,
que havia estudado na Graduação.
Reich, médico psiquiatra, foi aluno
de Freud e fez um estudo médico e científico sobre o organismo vivo, que ele
chamou de “teoria da economia sexual”, baseado nos conceitos da psicanálise de
Freud. Seu livro A Função do Orgasmo [1] é
a publicação dessa pesquisa. Mais tarde, elabora sua teoria sobre a “análise do
caráter”.[2] Sem
resvalar demasiadamente para a psicologia, é preciso esclarecer como Freud
concebe a psique humana, para então podermos definir a teoria reichiana e dele
extrairmos o que realmente é relevante a este trabalho.
Segundo Freud, a vida do homem sobre
a terra suplantou a sua própria condição animal e o propósito primordial da
vida que é a busca do prazer, seja dominando sua própria natureza, ou
controlando a natureza a sua volta, extraindo o alimento da terra e
sobrevivendo a uma condição hostil. Todo o progresso empreendido ao longo de
milênios fez com que o homem introjetasse seu próprio código de normas a fim de
dominar a si mesmo e aos outros.[3] Do
seu ego, onde reside sua consciência, sua maneira de ser, cria um superego que
o controla e assim a sua consciência. Porém, esse superego também é formado de
uma agressividade inata, que é internalizada, gerando conflito entre parte do
ego e a consciência, gerando o sentimento de culpa e a necessidade de punição.
O código de normas transforma-se em leis, a civilização se organiza em torno
dessas leis, há uma renúncia extremada ao instinto produzindo uma autoridade
exasperada interna e externamente. Internamente o homem produziu mais
consciência, soube sublimar seu instinto e gerar cultura, no entanto o exagero
de sentir-se dominador, de renunciar ao instinto e gerar mais progresso, mais
civilização, levou-o a mais e mais frustração em não conseguir satisfazer sua
busca primordial do prazer. A psicanálise freudiana consiste em aliviar essa
tensão entre ego e superego, trazendo ao consciente os recônditos do
inconsciente inatingível ao homem.
Reich constata que o inconsciente
dificilmente atingido segundo Freud, se manifestava perceptivelmente através
dos impulsos e sensações do meio vegetativo e de suas atitudes de caráter (a
estrutura psíquica é estrutura biofísica), porém continuavam não conscientes ao
próprio homem. Dentre os impulsos está a capacidade orgástica, que se constitui
não somente do sentido sexual, mas na busca primitiva do prazer de estar vivo,
de sentir-se integrado ao mundo e ao cosmos. O homem ao longo dos tempos foi
perdendo esse contato até desembocar no mundo moderno, onde essa noção de
prazer foi deturpada seja na exasperação pelo sexo, na coisificação da
sensualidade, seja no desvio da sensação de prazer atrelada ao consumo. Ao
substituir sua função sexual natural, o homem perdeu o contato consigo mesmo e
adoeceu gravemente. A doença maior foi a repressão a que se submeteu e submete
aos outros, criando uma contradição interior e gerando grande angústia. A
formação do caráter, para Reich, é o conflito entre o instinto e o frustrante
meio externo, gerando angústia. Para se defender, entre ele mesmo e o meio
externo constrói os mecanismos de proteção do caráter.
Para o indivíduo os perigos
exteriores foram diminuindo, na medida em que a civilização foi progredindo,
porém com as guerras e as desigualdades sociais, a luta pela sobrevivência,
hoje, se equipara aos tempos do homem primitivo. A inibição dos impulsos
torna-se uma necessidade frente aos perigos e a ameaça de punição. Assim,
quanto mais angústia atual se evita, mais angústia estásica se produz. Já os
animais, de uma forma geral, tendem a se organizar socialmente, o que produz
angústia atual, porém, salvo em casos de domesticação, não sofrem de angústia
estásica.
Reich concebeu toda uma linguagem
estruturada para explicar sua teoria. Para ele “estase”, que ele buscou na
medicina, significa medo da excitação natural, do prazer de viver, do prazer do
orgasmo, que gera angústia, angústia de orgasmo, ou mais propriamente medo da
vida. Diante disso, o corpo cria uma atitude muscular, uma expressão do corpo,
uma expressão de si, que foi classificada por ele em tipos, denominados “tipos caracterológicos”.
Essa atitude muscular transforma-se em “couraça muscular”, modo de conduta na
vida, desenvolvimento de sua própria existência. O ambiente é fator
preponderante para a formação dessa couraça, porém, não se descarta o fator
hereditário, sua própria história familiar e social. A couraça muscular
manifesta-se nos “anéis” descritos por Reich como divisões do corpo e
apresentando uma significação de ordem interior e exterior.
A respiração tem uma função
primordial na vida humana, introduzir oxigênio e remover o dióxido de carbono e
promover a combustão dos alimentos a fim de gerar energia para o bom
funcionamento do corpo. Ela rege a absorção do ar, do alimento e das impressões
que nos vêm de fora, tanto mentais como físicas. Quando a respiração é curta,
temos menos oxigênio, menos energia, menos excitações vegetativas, daí mais
controle, mais angústia e redução da produção de energia. A terapia reichiana
se propõe a analisar o tipo de caráter, desfazer a couraça apresentada por meio
dos anéis utilizando-se da respiração, permitindo assim que o indivíduo tome
consciência de seu tipo, de seus medos, de seus bloqueios e travas corporais,
respirando melhor e transformando seu próprio organismo.
Exponho aqui os tipos caracterológicos
reichianos, pois eles mostram proximidade com personagens teatrais e suas
contradições:
1. Caráter aristocrático – sem
autocontrole extremado, um sentimento de inferioridade manifestado pela própria
altivez, comportamento sádico.
2. Caráter histérico – tem uma
conduta sexual evidente, demonstrada por meio de uma agilidade corporal, porém
pode ter uma passividade e angústia, mostradas numa mudança de conduta
inesperada. Nas mulheres coqueteria, nos homens cortesia excessiva e brandura.
3. Caráter compulsivo – tem uma
preocupação pedante por ordem, não é afeito às mudanças, pode ser um bom
funcionário, mas péssimo estadista, talvez um homem de ciência, é rígido e
controlado, com freio afetivo, mostra-se superficial e minucioso. Tem avarícia,
compaixão e sentimento de culpa.
4. Caráter fálico-narcisista – dizem
os terapeutas ser este o caráter do ator! É arrogante, vigoroso, dominador, e
tem porte atlético. Possui uma atitude defensiva escondendo tendências
femininas, é agressivo aos outros. São atletas, aviadores, soldados,
engenheiros, alcoólatras e toxicômanos.
5. Caráter masoquista – tem uma
sensação crônica de sofrimento, tendência à compulsão e a torturar os outros, a
lamentar-se, por isso tem auto menosprezo. Porém é refinado, tem ideias de
grandeza, mas possui disposição à angústia e uma alta tensão interna.[4]
Os tipos descritos por Reich servem
não somente como análise e leitura corporal, como também para composição de um
personagem, na criação e na análise para atores, enriquecendo sua composição.
Após a análise dos tipos, os anéis
reichianos serão preponderantes para a percepção de como devem ser trabalhadas
as tensões, bem como a leitura de onde se forma a couraça muscular e onde ela
está alojada. São eles: o anel visual envolvendo a respiração, ou seja, todas
as impressões que nos vem de fora; o anel oral que trata da comunicação e da
empatia; o anel cervical que mostra a direção e o tamanho do horizonte da
pessoa; o anel peitoral que é a expressão das emoções; o anel diafragmático
significando o medo e a ansiedade; o anel abdominal onde se aloja a coragem; e
o anel pélvico que é a vitalidade do corpo.
Embora o processo ao qual Plínio
Marcos nos submeteu fosse ao contexto de um grupo de estudo místico, os
exercícios eram, ao contrário, para nos fazer conscientes do corpo e presentes
no nosso tempo e espaço. Pelos próprios princípios políticos e racionais de
Plínio e de Reich, nosso grupo deveria ter “os pés no chão” quanto à abordagem
mística, não deixando assim, que ultrapassasse o limite do mundo real. A
respiração que fazíamos, proposta nos exercícios reichianos, nos colocava em
contato com nosso mais profundo inconsciente, num efeito catártico. No contexto
corporal a respiração nos trazia mais conscientes de nossas tensões e doenças.
Mais tarde fui descobrir que havia passado por todos os exercícios de
respiração de Reich com certo sucesso, o que me valeu como conhecimento
aprofundado da sua teoria. Foi então que busquei a psicóloga e psicoterapeuta
especialista em Reich Eliana Isola Rodrigues Silva, que foi quem me incentivou
a pesquisar os exercícios voltados ao ator. Ela já atestava uma proximidade do
processo de formação do ator e os exercícios de respiração, haja vista a
liberação do processo criativo e o desbloqueio corporal que esses exercícios
trazem. Então, fui à busca da terapia reichiana, a fim de me submeter e
integrar um grupo terapêutico, após participar de um encontro da associação
reichiana. A prática dos exercícios corporais e respiratórios foi intensa e meu
objetivo era vivenciar, experienciar, mas também observar. Com o auxílio da
terapeuta coordenadora pude discutir a técnica e assimilar melhor a técnica
corporal, já que a respiração eu já dominara. Foi também na troca de impressões
com a colega de curso e amiga, a atriz Cleide Queiroz, que meu interesse em
Reich cresceu. Cleide sempre contava do uso das técnicas de Reich no teatro na
década de sessenta, quando “da preocupação em se trabalhar o corpo do ator, da
transição de um teatro de intervenção, revolucionário, para um teatro de
interação com o público através do toque”.[5]
Os exercícios
reichianos provocavam uma alta e rápida tomada de consciência, incomparável com
outras terapias as quais já me havia submetido. O corpo tinha de se mexer,
exprimir-se, movimentar-se, porém sem tirar os pés do chão, sem sair do lugar,
com os pés paralelos, abertos a uma distância um do outro, confortavelmente e
que possibilitasse o equilíbrio do corpo. De olhos fechados, o corpo em
movimento, a respiração consistia em inspirar de uma só vez, expirar em duas
vezes, sendo a segunda como se empurrasse o ar dos pulmões para fora. Isso,
segundo Reich, possibilitava a restauração do organismo, visto que quando
respiramos no nosso dia a dia não expiramos suficientemente deixando que se
acumulem toxinas e tensões que se transformarão em enfermidades das mais comuns
às mais graves. Organicamente isso causa uma maior oxigenação do sangue e do
cérebro consequentemente, ocasionando no início tontura e a expressão de fortes
sentimentos, com o tempo alívio e sentimentos de prazer. Tomar consciência do
corpo e de suas tensões, da respiração e das sensações que emergiam não foi um
trabalho fácil, exigiu um estado de alerta, ao mesmo tempo em que propiciava a
sensação de liberação das tensões. Acontece uma energização do organismo, todas
as dores cessam, toda ansiedade desaparece, a mente fica completamente livre.
Corpo e mente se “despoluem”, ao mesmo tempo em que se abastecem. Reich
descreve que essa sensação é a mesma do orgasmo e que o orgasmo é o contato com
a energia mais pura e primitiva do cosmos – a orgone, a energia da vida. A
finalidade da terapia reichiana em si é a análise do caráter a fim de liberar
afetos, primeiramente a cólera e a angústia que são mecanismos de defesa,
dissolvendo as atitudes e produzindo novas reações no sistema nervoso.
Ao experienciar
os exercícios de Reich pude perceber a importância do trabalho corporal para o
ator. As mudanças ocorridas nos espetáculos seguintes foram perceptíveis e
então me embrenhei mais e mais no desenvolvimento da consciência corporal do
ator.
A abordagem do
trabalho com o corpo do ator sempre foi equivocada. Quando iniciei no teatro,
uma atriz deveria saber impostar a voz e ter perfeita dicção aprendendo canto
lírico, assim como para a expressividade e preparo corporal deveria aprender
dança moderna e expressão corporal que pouquíssimas professoras de dança sabiam
dar como a mestra René Gumiel. É óbvio que todo o sistema utilizado deriva da
dança, pois o teatro vem dela e carrega acentuadamente os meios de expressão da
dança. Por isso, antes de um ator ser bailarino também, deve investir o seu
tempo no seu preparo corporal e aqui vão inclusas voz e dicção, ou seja,
trabalho com texto. O intelecto e as emoções são matérias do dia a dia do ator,
que ele vai colhendo, observando e absorvendo. Laban ressalta que o trabalho
corporal e o domínio do movimento são importantes para qualquer um, seja ator
ou dançarino, pessoa comum ou cantor. Para ele corpo e mente pode produzir o
que quiser, e é o pensamento que cria o movimento, “lê e reproduz o
comportamento das pessoas através da memória do movimento real”.[6] Assim como para Klauss Vianna a
consciência corporal é uma técnica a ser aprendida e desenvolvida, ela não é
dada. Klauss, certamente, tenha tomado de Reich o desbloqueio corporal por meio
da respiração e da consciência das articulações que são as responsáveis pelo
movimento e pelo gesto.
A criança
apreende o mundo por meio da imitação e se expressa por meio dos gestos durante
muito tempo. Somente depois de conseguir armazenar o suficiente de impressões
sensoriais, mentais emocionais é que se dá a expressão verbal. Se a história é
processo, a história de cada um também é processo, um processo evolutivo,
descoberto por Charles Darwin (1809/1882) não só em relação aos animais e
plantas, como também em relação aos seres humanos que são parte da natureza. Ele
estudou profundamente as emoções e suas expressões dos homens e dos animais
dividindo-as em movimentos úteis, objetivos que executamos todos os dias e
ações reflexas inconscientes. Os movimentos expressam sentimentos, guardam
significados que se traduzem em gestos, individualizados e aprendidos.[7] O gesto, como já vimos, é o primeiro ato
de comunicação do ser humano, ele aprende por imitação os seus significados
exteriores, porém elabora, simultaneamente, o seu próprio conjunto de gestos
para se expressar. Durante muito tempo ele se comunica com os outros por meio
dos gestos. Como forma de melhor esclarecer o conteúdo do pensamento de Darwin,
fiz esse resumo referente às observações de Darwin dos homens e dos animais e
suas emoções e manifestações físicas:
GOZO – manifesta vontade de dançar,
bater palmas, bater com os pés no chão. Um sorriso passa ao riso, é um
sentimento de prazer, não é um ato reflexo. “O riso que oprime o peito”.
ALEGRIA – retrata uma pessoa de bom
humor, traz a retração para cima dos extremos da boca, a tensão acelera a
circulação, os olhos brilham, o rosto é mais colorido, sentimentos afetuosos
mais expansivos, todo o rosto é arqueado para cima.
AMOR E SENTIMENTOS TERNOS – há o
desejo de contato com a pessoa amada, entre mãe e filho, pois é hereditário.
Beijo cordial, simpatia e afeto.
PIEDADE – manifestação de alçar o
rosto para o céu, voltando os olhos para o alto, postura humilde, de joelhos,
braços elevados, mãos juntas, pensamento absorto.
REFLEXÃO –
mostra no rosto o franzir as sobrancelhas (músculo da reflexão) como expressão
de obstáculo encontrado na fruição dos pensamentos, se manifestam desde a
infância.
MEDITAÇÃO – é
distração, o olhar mira o vazio, a reflexão vem acompanhada com o gesto de
colocar a mão no rosto, na boca, na barba. Esses gestos são observados também
em macacos.
MAU-HUMOR – no
rosto aparece o franzir de sobrancelhas, depressão das extremidades da boca,
lábio inferior para fora, contração dos músculos piramidais do nariz.
ENFADO – há
elevação dos ombros, este ato se dá desde a infância até a idade madura.
DECISÃO – há
oclusão enérgica da boca, cerrar a boca, parar de respirar.
ÓDIO –
manifesta-se como rigidez geral na atitude.
FUROR – aparece
um rubor da pele do rosto.
CÓLERA – aparece
o franzir as sobrancelhas, olhos brilhantes, bem abertos, dilatação das
cavidades nasais, retração lateral dos lábios mostrando um pouco os dentes,
como se ameaçasse o adversário de mordê-lo.
INDIGNAÇÃO – há
respiração acelerada, boca cerrada, posição de desafio e ataque, os pés apoiados
solidamente no chão, peito comprimido, cabeça se levanta; furor, cólera e
indignação têm expressões iguais no mundo inteiro.
No ar de desafio
mostra o dente canino de um lado como o cão, ocorre também no mau-humor.
DESDÉM E
DESPREZO – há alternância e diferenciação, elevação do nariz e do lábio
superior (relinchar e expirar), impressão de odor desagradável, enrolar várias
vezes um objeto com as mãos.
DESGOSTO – o
desprezo e o desgosto ao extremo são igual à repulsão, o que não agrada ao
gosto, aos sentidos está ligada ao odor e à alimentação, a boca abre diversas
vezes como se fosse vomitar, o que significa repugnância.
CULPABILIDADE –
há olhares furtivos, de um lado ao outro, também ocorre na astúcia.
ORGULHO –
apresenta rigidez corporal, “inchaço”, dentes cerrados.
IMPOTÊNCIA E
PACIÊNCIA – encolhimento dos ombros (não posso fazer nada), sobrancelhas se
levantam, braços dobrados, mãos e boca abertas.
AFIRMAÇÃO E
NEGAÇÃO – há censura, mover lado a lado a cabeça.
SURPRESA –
sobrancelhas levantadas, olhos abertos, boca também, lábios salientes, atenção
súbita muito próxima ao terror, mãos acima da cabeça ou na altura do rosto.
ADMIRAÇÃO – há
surpresa, prazer e aprovação.
TERROR –
eriçamento dos cabelos, dilatação das pupilas, contração dos músculos cutâneos
(parte lateral do colo até a clavícula e até a orelha é o músculo do espanto).
HORROR - é
também precedido de surpresa – boca aberta, sobrancelhas levantadas, coração
disparado, peito levantado, suor frio. Grito de horror, grande sofrimento,
tortura, agonia, os braços se lançam para frente.
O sistema
Delsarte (François Delsarte 1811/1871) se baseia nesses princípios darwianos,
estudando o gesto do ponto de vista do movimento fisiológico, onde “o corpo é o
instrumento, o ser o instrumentista e a ação principal é a ação muscular”.[8] O seu sistema é
descrito minuciosamente por A. Giraudet, amplamente exemplificado por
ilustrações, sendo ele famoso por agrupar regras e sistemas para a mímica.
Sabe-se que a França tem forte tradição no campo da expressão corporal, haja
vista a continuidade de Decroux, Barrault e Lecoq, seja na pesquisa, no ensino
ou na atuação.
Decroux,
responsável pela expressão corporal do Vieux-Colombier ressalta que devemos
escutar nosso “texto interior”, nossos sentimentos, nossos pensamentos e nosso
corpo, pois a mímica é a arte do silêncio. Para Barrault, que sempre foi
preocupado com o trabalho corporal do ator, há três elementos da linguagem
corporal: a atitude, o gesto e a indicação. O gesto é uma frase carregada de
significados que são elaborados na atitude que se tem diante do personagem. [9]
Yoshi Oida chama
a atenção em seu livro ao descrever que no Ocidente não é usual o trabalho com
o corpo e confessa desconhecer o que seja improvisação, assim que integra a
companhia de Peter Brook. Porque o teatro oriental é todo ele baseado em
“códigos” e “formas”, e cada papel tem o seu código (katá) que é aprendido com
um mestre. Esses códigos são predominantemente corporais.[10] A identidade de Oida
com o trabalho de Brook se faz porque para ambos transmitir verdades, enquanto
atores é ter o corpo em prontidão e como instrumento de uma inteligência
rápida. A improvisação, para ele, é uma técnica “difícil e precisa”,
contrariamente ao que se entende como um exercício de espontaneidade pressupõe treinamento
e fundamentalmente “senso de humor”.[11] Para Eugenio Barba,
que também trabalha com atores do mundo todo, não se trabalha o corpo, mas a
energia desse corpo deve-se negar a atitude usual, se permitir utilizar outra
ação, outro modo. Essa é a essência da sua teoria do corpo dilatado que
pressupõe mente dilatada, uma mudança de consciência que permite “superar a
inércia e a monotonia da repetição”.[12]
O método da Commedia dell’Arte, segundo Anton Giulio
Bragaglia (1890/1960) na introdução do livro de Andréa Perrucci, é da
“improvisação predisposta”, não se origina dos primeiros histriões etruscos
vindos a Roma, mas do próprio temperamento italiano. Do trabalho na praça
pública, do impulso e da necessidade da ocasião, o improviso é a raiz do verdadeiro
teatro popular. O teatro, para ele, é para se fazer, não para se falar e se
funda na prática. Nesse primeiro tratado para o ator feito por um
ator-professor, Perrucci descreve a divisão entre representar com um texto
previamente ensaiado (rappresentare premeditato) e representar improvisando
(rappresentare all’improvviso). A primeira torna-se mais fácil, pois há a
segurança da total preparação do texto, da voz, da memória, do gesto e das
ações. Os atributos da representação improvisada são que ela é sempre feita
através da comédia, é difícil e perigosa, pressupõe o domínio da arte retórica,
pois se tem de dar conta do texto como se fosse um poeta, ter habilidade de
criar uma grande variedade de personagens. São necessários também o domínio do
idioma e da linguagem, uma aguçada imaginação e o encadeamento e domínio
perfeitos dos sentimentos a serem expressos. Tudo isso somente é possível,
porque se cria um roteiro (soggetto) do que o ator fará e são marcados os
truques também pré-armados (lazzi).[13]
A ênfase está na
ação dos personagens, o grande exercício é construir um encadeamento de ações
com determinadas atitudes que guardam emoções, para poder surgir gestos e
movimentos. Por isso, os personagens da Commedia
dell’Arte são classificados por meio do que fazem, mais do que suas
definições emocionais, são tipos definidos por suas ações.
Chaplin além de
ter sido ator de cinema, também foi de teatro e pode servir de exemplo como
domínio da expressão corporal, da disponibilidade corporal, do domínio da
improvisação, como meio de criação do ator. Todos os seus filmes, mesmo aqueles
com falas, mostram claramente sua técnica aguçada do palhaço e do acrobata que foi
do bufão irreverente, do mímico, do comediante e do ator. O Vagabundo (The
Tramp – 1915) foi o sexto filme de Chaplin e o primeiro a apresentar o
personagem de Carlitos caracterizado pela dignidade e nobreza de caráter.
Porém, dos filmes de Chaplin, talvez, o mais simples deles – Carlitos
Noctâmbulo (One A. M. - 1916) retrate fielmente o domínio corporal e o
tempo de comédia do personagem Carlitos. O cenário é de uma casa e Carlitos,
sozinho, entra bêbado de madrugada, tem dificuldades para entrar em casa, para
subir a escada, para se servir do último gole de bebida e para deitar-se. Com
ações simples e cotidianas, ele enriquece a cena transformando-as em batalhas a
serem vencidas, alterando o significado de cada simples ato, pelos imprevistos
que acontecem e das acrobacias feitas por ele em estilo circense.
**********************
Somente no
século XIX e XX é que o riso toma seu lugar como gênero no Brasil e não como
designação aristotélica oposta à tragédia. Sendo preferência da arte popular,
ele sempre foi considerado menor, pouco elaborado, afeito a atores “menores”,
como se a tarefa de fazer rir fosse muito fácil. A arte de fazer graça é
privilégio de poucos, é de atores que possuem um desprendimento tal que se
permitem, sem pudor, tornarem-se ridículos, risíveis e engraçados.
É errado afirmar
que após os “autos” de Anchieta, 1565, não houve teatro até a “Casa da Ópera”
em 1767 no Rio de Janeiro. Tivemos nosso teatro colonial, seja cenicamente,
seja literariamente. Talvez por não fazer parte do Rio de Janeiro, mas sim da
Bahia e de Pernambuco, esse teatro tenha sido esquecido.
Nossa herança
brasileira é cômica, segundo Sussekind e Martins Pena é o consolidador
definitivo. A comédia com Pena, com sua “maneira”, seu estilo genuinamente
brasileiro, retratando a roça e a cidade em diálogos precisos, inaugura a
comédia de costumes.[14]
Existem várias
versões para a origem da comédia, porém a mais cômica é a descrita por Leone
de’Sommi: os camponeses de Atenas foram os primeiros a representar comédias,
pois eram “ultrajados por seus superiores”, então andavam em grupo pelas
esquinas falando mal dos governantes. O povo gostou e começou a frequentar
esses lugares para ouvir falar mal dos outros.[15] Estamos até hoje fazendo sucesso ao falar
mal dos outros e gostando de fazer comédias.
VISITEM TAMBÉM
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[3]
Ver FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Coleção Os pensadores, SP,
Abril Cultural, 1978
[5]
Esse estilo foi marcado pelo Grupo Rito do Amor Selvagem. Entrevista concedida
em 11/10/2003.
[6]
LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. SP, Ed. Summus, 1978, pgs. 131 e 36
[7] DARWIN, Carlos R.. La expresión de las emociones
en el hombre y en los
animales. 2 volumes,
Valencia, F. Sempere y Cia Editores, s/d, pg. 36
[8] GIRAUDET, A.. Mimique,
Physionomie et Gestes. Paris, Librairies-Imprimeries
Reunis, 1895, pg. 11
[9] BARRAULT, Jean-Louis. Nouvelles Réflexions sur
le théâtre. Paris, Flamarion, 1959, pg. 74
[11]
BROOK, Peter. O ponto de mudança. RJ, Civilização Brasileira, 1994, pg. 148
[12] BARBA, Eugenio. Il corpo dilatato. Roma, La
Goliardica Editrice Universitaria di Roma,
1985, pg. 19
[13] PERRUCCI, Andréa. Dell’arte rappresentativa
premeditata ed all’improvviso.
Firenze, Edizione Sansoni
Antiquariato, 1961, pgs 111 e 112
[14]
MENDONÇA, Carlos Sussekind de . História do Teatro Brasileiro, RJ, Mendonça
Machado e Cia, 1926, pgs. 227 e 235
[15] SOMMI, Leone de’. (Org. J. Guinsburg) Um judeu no
teatro da renascença
italiana. SP, Ed. Perspectiva,
1989, pgs, 64 e