domingo, 9 de agosto de 2015

Capítulo 2 - segunda parte

O meu primeiro contato com Wilhelm Reich (1897/1957) foi quando cursava a Graduação em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica (PUC), pois inúmeras vezes o seu nome era citado. Foi um médico, que muito influenciou o pensamento de sua época. A importância de Reich no pensamento filosófico dava-se como contraponto a tudo o que já havia sido pensado, pois ele atacava o comportamento não só do indivíduo, mas de toda a sociedade. Por muito tempo Reich passou por meus olhos como textos escolhidos dentro dos cursos, citações, até participar de um grupo de estudos com Plínio Marcos, apaixonado e grande estudioso de Reich. Então, tive de estuda-lo, aprofundando-me em sua obra. Apaixonei-me por Reich e então retornei a Freud, que havia estudado na Graduação.

Reich, médico psiquiatra, foi aluno de Freud e fez um estudo médico e científico sobre o organismo vivo, que ele chamou de “teoria da economia sexual”, baseado nos conceitos da psicanálise de Freud. Seu livro A Função do Orgasmo [1] é a publicação dessa pesquisa. Mais tarde, elabora sua teoria sobre a “análise do caráter”.[2] Sem resvalar demasiadamente para a psicologia, é preciso esclarecer como Freud concebe a psique humana, para então podermos definir a teoria reichiana e dele extrairmos o que realmente é relevante a este trabalho.

Segundo Freud, a vida do homem sobre a terra suplantou a sua própria condição animal e o propósito primordial da vida que é a busca do prazer, seja dominando sua própria natureza, ou controlando a natureza a sua volta, extraindo o alimento da terra e sobrevivendo a uma condição hostil. Todo o progresso empreendido ao longo de milênios fez com que o homem introjetasse seu próprio código de normas a fim de dominar a si mesmo e aos outros.[3] Do seu ego, onde reside sua consciência, sua maneira de ser, cria um superego que o controla e assim a sua consciência. Porém, esse superego também é formado de uma agressividade inata, que é internalizada, gerando conflito entre parte do ego e a consciência, gerando o sentimento de culpa e a necessidade de punição. O código de normas transforma-se em leis, a civilização se organiza em torno dessas leis, há uma renúncia extremada ao instinto produzindo uma autoridade exasperada interna e externamente. Internamente o homem produziu mais consciência, soube sublimar seu instinto e gerar cultura, no entanto o exagero de sentir-se dominador, de renunciar ao instinto e gerar mais progresso, mais civilização, levou-o a mais e mais frustração em não conseguir satisfazer sua busca primordial do prazer. A psicanálise freudiana consiste em aliviar essa tensão entre ego e superego, trazendo ao consciente os recônditos do inconsciente inatingível ao homem.

Reich constata que o inconsciente dificilmente atingido segundo Freud, se manifestava perceptivelmente através dos impulsos e sensações do meio vegetativo e de suas atitudes de caráter (a estrutura psíquica é estrutura biofísica), porém continuavam não conscientes ao próprio homem. Dentre os impulsos está a capacidade orgástica, que se constitui não somente do sentido sexual, mas na busca primitiva do prazer de estar vivo, de sentir-se integrado ao mundo e ao cosmos. O homem ao longo dos tempos foi perdendo esse contato até desembocar no mundo moderno, onde essa noção de prazer foi deturpada seja na exasperação pelo sexo, na coisificação da sensualidade, seja no desvio da sensação de prazer atrelada ao consumo. Ao substituir sua função sexual natural, o homem perdeu o contato consigo mesmo e adoeceu gravemente. A doença maior foi a repressão a que se submeteu e submete aos outros, criando uma contradição interior e gerando grande angústia. A formação do caráter, para Reich, é o conflito entre o instinto e o frustrante meio externo, gerando angústia. Para se defender, entre ele mesmo e o meio externo constrói os mecanismos de proteção do caráter.

Para o indivíduo os perigos exteriores foram diminuindo, na medida em que a civilização foi progredindo, porém com as guerras e as desigualdades sociais, a luta pela sobrevivência, hoje, se equipara aos tempos do homem primitivo. A inibição dos impulsos torna-se uma necessidade frente aos perigos e a ameaça de punição. Assim, quanto mais angústia atual se evita, mais angústia estásica se produz. Já os animais, de uma forma geral, tendem a se organizar socialmente, o que produz angústia atual, porém, salvo em casos de domesticação, não sofrem de angústia estásica.

Reich concebeu toda uma linguagem estruturada para explicar sua teoria. Para ele “estase”, que ele buscou na medicina, significa medo da excitação natural, do prazer de viver, do prazer do orgasmo, que gera angústia, angústia de orgasmo, ou mais propriamente medo da vida. Diante disso, o corpo cria uma atitude muscular, uma expressão do corpo, uma expressão de si, que foi classificada por ele em tipos, denominados “tipos caracterológicos”. Essa atitude muscular transforma-se em “couraça muscular”, modo de conduta na vida, desenvolvimento de sua própria existência. O ambiente é fator preponderante para a formação dessa couraça, porém, não se descarta o fator hereditário, sua própria história familiar e social. A couraça muscular manifesta-se nos “anéis” descritos por Reich como divisões do corpo e apresentando uma significação de ordem interior e exterior.

A respiração tem uma função primordial na vida humana, introduzir oxigênio e remover o dióxido de carbono e promover a combustão dos alimentos a fim de gerar energia para o bom funcionamento do corpo. Ela rege a absorção do ar, do alimento e das impressões que nos vêm de fora, tanto mentais como físicas. Quando a respiração é curta, temos menos oxigênio, menos energia, menos excitações vegetativas, daí mais controle, mais angústia e redução da produção de energia. A terapia reichiana se propõe a analisar o tipo de caráter, desfazer a couraça apresentada por meio dos anéis utilizando-se da respiração, permitindo assim que o indivíduo tome consciência de seu tipo, de seus medos, de seus bloqueios e travas corporais, respirando melhor e transformando seu próprio organismo.

Exponho aqui os tipos caracterológicos reichianos, pois eles mostram proximidade com personagens teatrais e suas contradições:
1. Caráter aristocrático – sem autocontrole extremado, um sentimento de inferioridade manifestado pela própria altivez, comportamento sádico.
2. Caráter histérico – tem uma conduta sexual evidente, demonstrada por meio de uma agilidade corporal, porém pode ter uma passividade e angústia, mostradas numa mudança de conduta inesperada. Nas mulheres coqueteria, nos homens cortesia excessiva e brandura.
3. Caráter compulsivo – tem uma preocupação pedante por ordem, não é afeito às mudanças, pode ser um bom funcionário, mas péssimo estadista, talvez um homem de ciência, é rígido e controlado, com freio afetivo, mostra-se superficial e minucioso. Tem avarícia, compaixão e sentimento de culpa.
4. Caráter fálico-narcisista – dizem os terapeutas ser este o caráter do ator! É arrogante, vigoroso, dominador, e tem porte atlético. Possui uma atitude defensiva escondendo tendências femininas, é agressivo aos outros. São atletas, aviadores, soldados, engenheiros, alcoólatras e toxicômanos.
5. Caráter masoquista – tem uma sensação crônica de sofrimento, tendência à compulsão e a torturar os outros, a lamentar-se, por isso tem auto menosprezo. Porém é refinado, tem ideias de grandeza, mas possui disposição à angústia e uma alta tensão interna.[4]

Os tipos descritos por Reich servem não somente como análise e leitura corporal, como também para composição de um personagem, na criação e na análise para atores, enriquecendo sua composição.

Após a análise dos tipos, os anéis reichianos serão preponderantes para a percepção de como devem ser trabalhadas as tensões, bem como a leitura de onde se forma a couraça muscular e onde ela está alojada. São eles: o anel visual envolvendo a respiração, ou seja, todas as impressões que nos vem de fora; o anel oral que trata da comunicação e da empatia; o anel cervical que mostra a direção e o tamanho do horizonte da pessoa; o anel peitoral que é a expressão das emoções; o anel diafragmático significando o medo e a ansiedade; o anel abdominal onde se aloja a coragem; e o anel pélvico que é a vitalidade do corpo.  

Embora o processo ao qual Plínio Marcos nos submeteu fosse ao contexto de um grupo de estudo místico, os exercícios eram, ao contrário, para nos fazer conscientes do corpo e presentes no nosso tempo e espaço. Pelos próprios princípios políticos e racionais de Plínio e de Reich, nosso grupo deveria ter “os pés no chão” quanto à abordagem mística, não deixando assim, que ultrapassasse o limite do mundo real. A respiração que fazíamos, proposta nos exercícios reichianos, nos colocava em contato com nosso mais profundo inconsciente, num efeito catártico. No contexto corporal a respiração nos trazia mais conscientes de nossas tensões e doenças. Mais tarde fui descobrir que havia passado por todos os exercícios de respiração de Reich com certo sucesso, o que me valeu como conhecimento aprofundado da sua teoria. Foi então que busquei a psicóloga e psicoterapeuta especialista em Reich Eliana Isola Rodrigues Silva, que foi quem me incentivou a pesquisar os exercícios voltados ao ator. Ela já atestava uma proximidade do processo de formação do ator e os exercícios de respiração, haja vista a liberação do processo criativo e o desbloqueio corporal que esses exercícios trazem. Então, fui à busca da terapia reichiana, a fim de me submeter e integrar um grupo terapêutico, após participar de um encontro da associação reichiana. A prática dos exercícios corporais e respiratórios foi intensa e meu objetivo era vivenciar, experienciar, mas também observar. Com o auxílio da terapeuta coordenadora pude discutir a técnica e assimilar melhor a técnica corporal, já que a respiração eu já dominara. Foi também na troca de impressões com a colega de curso e amiga, a atriz Cleide Queiroz, que meu interesse em Reich cresceu. Cleide sempre contava do uso das técnicas de Reich no teatro na década de sessenta, quando “da preocupação em se trabalhar o corpo do ator, da transição de um teatro de intervenção, revolucionário, para um teatro de interação com o público através do toque”.[5]  

Os exercícios reichianos provocavam uma alta e rápida tomada de consciência, incomparável com outras terapias as quais já me havia submetido. O corpo tinha de se mexer, exprimir-se, movimentar-se, porém sem tirar os pés do chão, sem sair do lugar, com os pés paralelos, abertos a uma distância um do outro, confortavelmente e que possibilitasse o equilíbrio do corpo. De olhos fechados, o corpo em movimento, a respiração consistia em inspirar de uma só vez, expirar em duas vezes, sendo a segunda como se empurrasse o ar dos pulmões para fora. Isso, segundo Reich, possibilitava a restauração do organismo, visto que quando respiramos no nosso dia a dia não expiramos suficientemente deixando que se acumulem toxinas e tensões que se transformarão em enfermidades das mais comuns às mais graves. Organicamente isso causa uma maior oxigenação do sangue e do cérebro consequentemente, ocasionando no início tontura e a expressão de fortes sentimentos, com o tempo alívio e sentimentos de prazer. Tomar consciência do corpo e de suas tensões, da respiração e das sensações que emergiam não foi um trabalho fácil, exigiu um estado de alerta, ao mesmo tempo em que propiciava a sensação de liberação das tensões. Acontece uma energização do organismo, todas as dores cessam, toda ansiedade desaparece, a mente fica completamente livre. Corpo e mente se “despoluem”, ao mesmo tempo em que se abastecem. Reich descreve que essa sensação é a mesma do orgasmo e que o orgasmo é o contato com a energia mais pura e primitiva do cosmos – a orgone, a energia da vida. A finalidade da terapia reichiana em si é a análise do caráter a fim de liberar afetos, primeiramente a cólera e a angústia que são mecanismos de defesa, dissolvendo as atitudes e produzindo novas reações no sistema nervoso.

Ao experienciar os exercícios de Reich pude perceber a importância do trabalho corporal para o ator. As mudanças ocorridas nos espetáculos seguintes foram perceptíveis e então me embrenhei mais e mais no desenvolvimento da consciência corporal do ator.

A abordagem do trabalho com o corpo do ator sempre foi equivocada. Quando iniciei no teatro, uma atriz deveria saber impostar a voz e ter perfeita dicção aprendendo canto lírico, assim como para a expressividade e preparo corporal deveria aprender dança moderna e expressão corporal que pouquíssimas professoras de dança sabiam dar como a mestra René Gumiel. É óbvio que todo o sistema utilizado deriva da dança, pois o teatro vem dela e carrega acentuadamente os meios de expressão da dança. Por isso, antes de um ator ser bailarino também, deve investir o seu tempo no seu preparo corporal e aqui vão inclusas voz e dicção, ou seja, trabalho com texto. O intelecto e as emoções são matérias do dia a dia do ator, que ele vai colhendo, observando e absorvendo. Laban ressalta que o trabalho corporal e o domínio do movimento são importantes para qualquer um, seja ator ou dançarino, pessoa comum ou cantor. Para ele corpo e mente pode produzir o que quiser, e é o pensamento que cria o movimento, “lê e reproduz o comportamento das pessoas através da memória do movimento real”.[6] Assim como para Klauss Vianna a consciência corporal é uma técnica a ser aprendida e desenvolvida, ela não é dada. Klauss, certamente, tenha tomado de Reich o desbloqueio corporal por meio da respiração e da consciência das articulações que são as responsáveis pelo movimento e pelo gesto.

A criança apreende o mundo por meio da imitação e se expressa por meio dos gestos durante muito tempo. Somente depois de conseguir armazenar o suficiente de impressões sensoriais, mentais emocionais é que se dá a expressão verbal. Se a história é processo, a história de cada um também é processo, um processo evolutivo, descoberto por Charles Darwin (1809/1882) não só em relação aos animais e plantas, como também em relação aos seres humanos que são parte da natureza. Ele estudou profundamente as emoções e suas expressões dos homens e dos animais dividindo-as em movimentos úteis, objetivos que executamos todos os dias e ações reflexas inconscientes. Os movimentos expressam sentimentos, guardam significados que se traduzem em gestos, individualizados e aprendidos.[7] O gesto, como já vimos, é o primeiro ato de comunicação do ser humano, ele aprende por imitação os seus significados exteriores, porém elabora, simultaneamente, o seu próprio conjunto de gestos para se expressar. Durante muito tempo ele se comunica com os outros por meio dos gestos. Como forma de melhor esclarecer o conteúdo do pensamento de Darwin, fiz esse resumo referente às observações de Darwin dos homens e dos animais e suas emoções e manifestações físicas:

GOZO – manifesta vontade de dançar, bater palmas, bater com os pés no chão. Um sorriso passa ao riso, é um sentimento de prazer, não é um ato reflexo. “O riso que oprime o peito”.
ALEGRIA – retrata uma pessoa de bom humor, traz a retração para cima dos extremos da boca, a tensão acelera a circulação, os olhos brilham, o rosto é mais colorido, sentimentos afetuosos mais expansivos, todo o rosto é arqueado para cima.
AMOR E SENTIMENTOS TERNOS – há o desejo de contato com a pessoa amada, entre mãe e filho, pois é hereditário. Beijo cordial, simpatia e afeto.
PIEDADE – manifestação de alçar o rosto para o céu, voltando os olhos para o alto, postura humilde, de joelhos, braços elevados, mãos juntas, pensamento absorto.
REFLEXÃO – mostra no rosto o franzir as sobrancelhas (músculo da reflexão) como expressão de obstáculo encontrado na fruição dos pensamentos, se manifestam desde a infância.
MEDITAÇÃO – é distração, o olhar mira o vazio, a reflexão vem acompanhada com o gesto de colocar a mão no rosto, na boca, na barba. Esses gestos são observados também em macacos.
MAU-HUMOR – no rosto aparece o franzir de sobrancelhas, depressão das extremidades da boca, lábio inferior para fora, contração dos músculos piramidais do nariz.
ENFADO – há elevação dos ombros, este ato se dá desde a infância até a idade madura.
DECISÃO – há oclusão enérgica da boca, cerrar a boca, parar de respirar.
ÓDIO – manifesta-se como rigidez geral na atitude.
FUROR – aparece um rubor da pele do rosto.
CÓLERA – aparece o franzir as sobrancelhas, olhos brilhantes, bem abertos, dilatação das cavidades nasais, retração lateral dos lábios mostrando um pouco os dentes, como se ameaçasse o adversário de mordê-lo.
INDIGNAÇÃO – há respiração acelerada, boca cerrada, posição de desafio e ataque, os pés apoiados solidamente no chão, peito comprimido, cabeça se levanta; furor, cólera e indignação têm expressões iguais no mundo inteiro.
No ar de desafio mostra o dente canino de um lado como o cão, ocorre também no mau-humor.
DESDÉM E DESPREZO – há alternância e diferenciação, elevação do nariz e do lábio superior (relinchar e expirar), impressão de odor desagradável, enrolar várias vezes um objeto com as mãos.
DESGOSTO – o desprezo e o desgosto ao extremo são igual à repulsão, o que não agrada ao gosto, aos sentidos está ligada ao odor e à alimentação, a boca abre diversas vezes como se fosse vomitar, o que significa repugnância.
CULPABILIDADE – há olhares furtivos, de um lado ao outro, também ocorre na astúcia.
ORGULHO – apresenta rigidez corporal, “inchaço”, dentes cerrados.
IMPOTÊNCIA E PACIÊNCIA – encolhimento dos ombros (não posso fazer nada), sobrancelhas se levantam, braços dobrados, mãos e boca abertas.
AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO – há censura, mover lado a lado a cabeça.
SURPRESA – sobrancelhas levantadas, olhos abertos, boca também, lábios salientes, atenção súbita muito próxima ao terror, mãos acima da cabeça ou na altura do rosto.
ADMIRAÇÃO – há surpresa, prazer e aprovação.
TERROR – eriçamento dos cabelos, dilatação das pupilas, contração dos músculos cutâneos (parte lateral do colo até a clavícula e até a orelha é o músculo do espanto).
HORROR - é também precedido de surpresa – boca aberta, sobrancelhas levantadas, coração disparado, peito levantado, suor frio. Grito de horror, grande sofrimento, tortura, agonia, os braços se lançam para frente.

O sistema Delsarte (François Delsarte 1811/1871) se baseia nesses princípios darwianos, estudando o gesto do ponto de vista do movimento fisiológico, onde “o corpo é o instrumento, o ser o instrumentista e a ação principal é a ação muscular”.[8] O seu sistema é descrito minuciosamente por A. Giraudet, amplamente exemplificado por ilustrações, sendo ele famoso por agrupar regras e sistemas para a mímica. Sabe-se que a França tem forte tradição no campo da expressão corporal, haja vista a continuidade de Decroux, Barrault e Lecoq, seja na pesquisa, no ensino ou na atuação.
 
Decroux, responsável pela expressão corporal do Vieux-Colombier ressalta que devemos escutar nosso “texto interior”, nossos sentimentos, nossos pensamentos e nosso corpo, pois a mímica é a arte do silêncio. Para Barrault, que sempre foi preocupado com o trabalho corporal do ator, há três elementos da linguagem corporal: a atitude, o gesto e a indicação. O gesto é uma frase carregada de significados que são elaborados na atitude que se tem diante do personagem. [9]

Yoshi Oida chama a atenção em seu livro ao descrever que no Ocidente não é usual o trabalho com o corpo e confessa desconhecer o que seja improvisação, assim que integra a companhia de Peter Brook. Porque o teatro oriental é todo ele baseado em “códigos” e “formas”, e cada papel tem o seu código (katá) que é aprendido com um mestre. Esses códigos são predominantemente corporais.[10] A identidade de Oida com o trabalho de Brook se faz porque para ambos transmitir verdades, enquanto atores é ter o corpo em prontidão e como instrumento de uma inteligência rápida. A improvisação, para ele, é uma técnica “difícil e precisa”, contrariamente ao que se entende como um exercício de espontaneidade pressupõe treinamento e fundamentalmente “senso de humor”.[11] Para Eugenio Barba, que também trabalha com atores do mundo todo, não se trabalha o corpo, mas a energia desse corpo deve-se negar a atitude usual, se permitir utilizar outra ação, outro modo. Essa é a essência da sua teoria do corpo dilatado que pressupõe mente dilatada, uma mudança de consciência que permite “superar a inércia e a monotonia da repetição”.[12]

O método da Commedia dell’Arte, segundo Anton Giulio Bragaglia (1890/1960) na introdução do livro de Andréa Perrucci, é da “improvisação predisposta”, não se origina dos primeiros histriões etruscos vindos a Roma, mas do próprio temperamento italiano. Do trabalho na praça pública, do impulso e da necessidade da ocasião, o improviso é a raiz do verdadeiro teatro popular. O teatro, para ele, é para se fazer, não para se falar e se funda na prática. Nesse primeiro tratado para o ator feito por um ator-professor, Perrucci descreve a divisão entre representar com um texto previamente ensaiado (rappresentare premeditato) e representar improvisando (rappresentare all’improvviso). A primeira torna-se mais fácil, pois há a segurança da total preparação do texto, da voz, da memória, do gesto e das ações. Os atributos da representação improvisada são que ela é sempre feita através da comédia, é difícil e perigosa, pressupõe o domínio da arte retórica, pois se tem de dar conta do texto como se fosse um poeta, ter habilidade de criar uma grande variedade de personagens. São necessários também o domínio do idioma e da linguagem, uma aguçada imaginação e o encadeamento e domínio perfeitos dos sentimentos a serem expressos. Tudo isso somente é possível, porque se cria um roteiro (soggetto) do que o ator fará e são marcados os truques também pré-armados (lazzi).[13]

A ênfase está na ação dos personagens, o grande exercício é construir um encadeamento de ações com determinadas atitudes que guardam emoções, para poder surgir gestos e movimentos. Por isso, os personagens da Commedia dell’Arte são classificados por meio do que fazem, mais do que suas definições emocionais, são tipos definidos por suas ações.

Chaplin além de ter sido ator de cinema, também foi de teatro e pode servir de exemplo como domínio da expressão corporal, da disponibilidade corporal, do domínio da improvisação, como meio de criação do ator. Todos os seus filmes, mesmo aqueles com falas, mostram claramente sua técnica aguçada do palhaço e do acrobata que foi do bufão irreverente, do mímico, do comediante e do ator. O Vagabundo (The Tramp – 1915) foi o sexto filme de Chaplin e o primeiro a apresentar o personagem de Carlitos caracterizado pela dignidade e nobreza de caráter. Porém, dos filmes de Chaplin, talvez, o mais simples deles – Carlitos Noctâmbulo (One A. M. - 1916) retrate fielmente o domínio corporal e o tempo de comédia do personagem Carlitos. O cenário é de uma casa e Carlitos, sozinho, entra bêbado de madrugada, tem dificuldades para entrar em casa, para subir a escada, para se servir do último gole de bebida e para deitar-se. Com ações simples e cotidianas, ele enriquece a cena transformando-as em batalhas a serem vencidas, alterando o significado de cada simples ato, pelos imprevistos que acontecem e das acrobacias feitas por ele em estilo circense.

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Somente no século XIX e XX é que o riso toma seu lugar como gênero no Brasil e não como designação aristotélica oposta à tragédia. Sendo preferência da arte popular, ele sempre foi considerado menor, pouco elaborado, afeito a atores “menores”, como se a tarefa de fazer rir fosse muito fácil. A arte de fazer graça é privilégio de poucos, é de atores que possuem um desprendimento tal que se permitem, sem pudor, tornarem-se ridículos, risíveis e engraçados.

É errado afirmar que após os “autos” de Anchieta, 1565, não houve teatro até a “Casa da Ópera” em 1767 no Rio de Janeiro. Tivemos nosso teatro colonial, seja cenicamente, seja literariamente. Talvez por não fazer parte do Rio de Janeiro, mas sim da Bahia e de Pernambuco, esse teatro tenha sido esquecido.
       
Nossa herança brasileira é cômica, segundo Sussekind e Martins Pena é o consolidador definitivo. A comédia com Pena, com sua “maneira”, seu estilo genuinamente brasileiro, retratando a roça e a cidade em diálogos precisos, inaugura a comédia de costumes.[14]

Existem várias versões para a origem da comédia, porém a mais cômica é a descrita por Leone de’Sommi: os camponeses de Atenas foram os primeiros a representar comédias, pois eram “ultrajados por seus superiores”, então andavam em grupo pelas esquinas falando mal dos governantes. O povo gostou e começou a frequentar esses lugares para ouvir falar mal dos outros.[15] Estamos até hoje fazendo sucesso ao falar mal dos outros e gostando de fazer comédias.


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[1] REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. SP, Brasiliense, 16ª ed., 1990
[2] REICH, Wilhelm. Analisis del caracter. Buenos Aires, Ed. Paidós, 1965
[3] Ver FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Coleção Os pensadores, SP, Abril Cultural, 1978
[4] REICH, Wilhelm. Analisis del caracter. Buenos Aires, Ed. Paidós,1965, pgs. 193 a 219
[5] Esse estilo foi marcado pelo Grupo Rito do Amor Selvagem. Entrevista concedida em 11/10/2003.
[6] LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. SP, Ed. Summus, 1978, pgs. 131 e 36
[7] DARWIN, Carlos R.. La expresión de las emociones en el hombre y en los
    animales. 2 volumes, Valencia, F. Sempere y Cia Editores, s/d, pg. 36

[8] GIRAUDET, A.. Mimique, Physionomie et Gestes. Paris, Librairies-Imprimeries
     Reunis, 1895, pg. 11

[9] BARRAULT, Jean-Louis. Nouvelles Réflexions sur le théâtre. Paris, Flamarion, 1959, pg. 74
[10] OIDA, Yoshi. O ator invisível. SP, Beca Produções Culturais, 2001, pg. 112
[11] BROOK, Peter. O ponto de mudança. RJ, Civilização Brasileira, 1994, pg. 148
[12] BARBA, Eugenio. Il corpo dilatato. Roma, La Goliardica Editrice Universitaria di Roma,
    1985, pg. 19

[13] PERRUCCI, Andréa. Dell’arte rappresentativa premeditata ed all’improvviso.
    Firenze, Edizione Sansoni Antiquariato, 1961, pgs 111 e 112

[14] MENDONÇA, Carlos Sussekind de . História do Teatro Brasileiro, RJ, Mendonça Machado e Cia, 1926, pgs. 227 e 235
[15] SOMMI, Leone de’. (Org. J. Guinsburg) Um judeu no teatro da renascença
     italiana. SP, Ed. Perspectiva, 1989, pgs, 64 e