Crítica – Diário de São Paulo – por Oscar Nimitz –
04/07/1961
A
Beata Maria do Egito personagem principal da peça do mesmo nome escrita por
Rachel de Queiroz, aparece como uma das figuras mais curiosas da nossa
dramaturgia. Vinda do seio do povo, é autêntica como ele. O teatro brasileiro
atravessa no momento uma fase em que se dá grande ênfase ao “popular”.
Emprega-se essas palavras com várias acepções. É popular, no sentido de
saborosa observação do povo, o teatro de Suassuna. É popular o teatro de Abílio
Pereira de Almeida, que há pouco, na peça Em
Moeda Corrente do País mostrou-se capaz de interessar o público por uma
situação dramática. São populares, no sentido político, as experiências do
Teatro de Arena, culminando com a peça A
Semente. Popular, no sentido mais genuíno, é esta Beata, surgindo vestida
de freira, e ao mesmo tempo que solta frases piedosas e ergue as mãos em prece,
arregimenta peregrinos para guerrear ao lado do Padre Cícero. Misto de santa e
de louca, ouvindo vozes que a aproximam de uma doente mental, atormentada pelo
desejo de luta e pela pregação religiosa, a beata colhida ao vivo nas pequenas
cidades cearenses, demonstra a pujança que pode ter o teatro, cujas raízes
repousam de fato no quadro social brasileiro. Maria do Egito, transportada da
barca e do barqueiro de Santa Maria Egipcíaca para o Nordeste, surge como a
mais autêntica personagem tirada dentre os simples. Calcada na realidade,
assume outras dimensões. Representa o próprio espírito do povo. A mistura de
religiosidade e superstição, tão comuns em nossa gente, faz de sua pessoa. O
misticismo do brasileiro transparece nos quatro únicos personagens da peça;
cada um, a seu modo, enfrenta o problema do sobrenatural. O Coronel Chico
Lopes, chefe político local, integra-se menos no problema: preocupa-o mais a
manutenção do posto. Cabo Lucas representa o homem comum, cuja crença irrompe
diante da presença da santa. O Tenente aparece como porta-voz do raciocínio e
da razão, o único que procura conhecer a verdade e que, por isso mesmo, acaba
sendo destruído. A Beata, famosa pelos milagres, conhecida como agitadora do
povo, encarna o fanatismo e todas as consequências deste. Esta figura de mulher
presta-se a uma série de análises. Do ângulo psicológico, é a menina enjeitada
em casa de religiosos, crescendo sem pai e sem mãe, adotando o dever sagrado
como causa única da existência. Mas Maria do Egito vai além da fiel, que
assiste à missa e acredita nos mandamentos. Junto com o rosário pode usar o
punhal. E fé, para ela, só a fé que envolve seu padrinho, o poderoso Padre
Cícero, do Juazeiro, e os estranhos romeiros que o seguem. A Beata pertence ao
quadro agitado da época, tanto político como social. Aproxima-se mais de uma
combatente. Como diz o tenente em uma de suas falas, propondo admiravelmente o
problema: afinal de contas, que é a jovem? Santa? Louca? Mistificadora? Ou a
mistura das três? Psiquiatricamente, poderia ser uma doente, paranoide,
dominada por ideias de grandeza, com mania religiosa e falta de senso crítico e
moral. Entrega-se ao tenente apaixonado antepondo ao corpo aquilo que julga ser
a fé, na esperança que a libertem para cumprir a missão. Seu procedimento
revela perda das proporções reais dos acontecimentos. Mas ao lado da
bem-aventurada ou doida, Maria do Egito é mulher; para o Tenente, só a mulher
de tranças compridas, perturbadora, que lhe concede uma noite e depois,
misteriosamente, recusa-se a admitir o amor. Acima de tudo, com esta obra
Rachel de Queiroz compõe um esplêndido estudo sobre a mentalidade popular,
focalizando o prisma religioso com inusitada grandeza e poético vigor. A peça
funciona dramaticamente; e é preciso realçar a linguagem, cuidada, literária e
ao mesmo tempo, compreensível e coerente. Os diálogos provam que se pode usar a
língua corretamente, sem perder o senso popular e as características teatrais.
Merece louvou a iniciativa do diretor Osmar Rodrigues Cruz que escolheu a peça
para o Teatro Experimental do Sesi. Dentro do nível amador, o espetáculo em si
é bastante bom. Salientam-se Wanda Orsi como a Beata, embora lhe falte a
transcendência que deve ter o papel; e a sinceridade interpretativa de Ednei
Giovenazzi, que apresenta qualidades de ator.
(in Osmar Rodrigues Cruz Uma Vida
no Teatro Hucitec 2001)
Wanda Orsi e Ednei Giovenazzi |
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