Nize Silva e Ednei Giovenazzi Foto: Fredi Kleemann |
Crítica
Estado
de São Paulo, por Décio de Almeida Prado – 02/04/1960
O
que há de melhor no espetáculo apresentado durante alguns dias no Municipal
pelo teatro Experimental do Sesi (e que provavelmente voltará ainda à cena) é
uma certa modéstia de propósitos, uma certa proporção entre fins e meios, entre
os objetivos e os resultados efetivamente alcançados. Nenhuma qualidade
excepcional em nenhum setor mas uma soma altamente meritória de qualidades
medianas. A peça de Richard Nash, que mereceu a honra de ser traduzida por
Manuel Bandeira, desenvolve a ideia que é muito constante no moderno teatro
americano: a realidade não é suportável se não a recebemos com um pouco de
fantasia. Não é preciso que o fazedor de chuva faça realmente chover. Pode ser
até um visionário, quase um charlatão (mas o visionário e o charlatão não
estarão porventura próximos do poeta e do artista?). Para que as suas
extravagantes promessas dêem frutos, basta que, em plena seca, negando a
realidade, ele garanta que vai chover, levando-nos por um momento a acreditar
na existência de um universo benigno e simpático aos homens. Esse é o mais
difícil milagre – que a chuva venha a cair não passa afinal de mais uma prova
de que Deus só ajuda aqueles que crêem porque é absurdo. Richard Nash não tem a
fantasia de um Giraudoux, nem mesmo a imaginação de um William Saroyan. O seu
gosto pelo extraordinário contenta-se, se pensarmos bem, com limites modestos,
ajustando-se sem dificuldades às dimensões do palco. Mas revela, não há dúvida,
uma certa sabedoria: a de não querer ser mais do que é. Lidando com personagens
voluntariamente convencionais, fazendo tudo terminar em casamento, dá à comédia
uma tonalidade rósea, de romance de mocinha, que, em vez de diminuir, realça a
graça e a simplicidade da fábula que escreveu. Por seu lado, a direção de Osmar
Rodrigues Cruz assenta-se sobre aqueles princípios que têm sido a salvação de
inúmeros espetáculos de amadores: um texto fácil, comunicativo, à altura dos
atores, uma boa distribuição de papéis e, quanto ao mais, sobretudo
naturalidade. Dentro desse esquema, a representação indiscutivelmente funciona.
Os cenários – de autoria de Francisco Giaccheri – estão cuidados, a marcação é
exata, as personagens esboçam-se perante o público com suficiente nitidez,
interpretados por Nize Pires da Silva, Ednei Giovenazzi o único desempenho em
que transparece o esforço do diretor, Jorge Ferreira da Silva, Alexandre de
Almeida, Francisco Curcio (talvez com possibilidades de tentar o profissional),
Paulo César da Silva e Francisco Giaccheri. O Teatro Experimental do Sesi não
cobra entrada. Dirigindo-se de preferência a operários e comerciários,
distribui gratuitamente, com antecedência, todos os ingressos, política que,
além de abarrotar o teatro, garante aos seus atores a colaboração de um público
extremamente espontâneo em suas reações. Teatro popular, em suma, não no
sentido heroico e revolucionário que a palavra assumiu nos últimos quarenta
anos, mas no sentido tradicional, de espetáculo que se dirige ao grande
público, trazendo ao convívio do palco camadas sociais ainda virgens e inexploradas
pelo teatro. Dissemos ou deixamos adivinhar – que o espetáculo não contém
nenhum elemento surpresa. Esquecemos um, mais do de surpresa, de genuíno
espanto: o fato da peça ter sido proibida para menores de dezoito anos. Não
pela censura teatral acrescente-se logo, mas pelo Juizado de Menores, que
ultimamente vem se constituindo na verdadeira censura em São Paulo. Ninguém
nega a esse órgão o direito e o dever de defender a infância. Mas os senhores
que compõem o conselho do Juizado para tais assuntos não podem ignorar que cada
cargo, cada função comporta o perigo das deformações profissionais. Se o
cachimbo entorta a boca, é bem provável que o lápis vermelho crie a volúpia de
cortar, de mutilar os textos alheios. A censura, propriamente dita, já tem
bastante idade e bastante experiência para resistir, na maioria das vezes, a
tais pruridos. Salvo algumas exceções, o seu critério tem sido o de uma
louvável liberdade. Já os assessores do Juizado parecem chegar à lição com toda
a paciência do cristão-novo. Não sabemos se se trata de provar autoridade, de
ser mais realista do que o rei, ou de demonstrar argúcia. Lá está o texto, o
inimigo, com as suas insídias, os seus embustes e emboscadas. Cabe ao censor
triunfar sobre ele, desencavando-lhe as malícias ocultas, expondo à luz do sol
as suas podridões encobertas e os seus intuitos malignos. No caso do Fazedor de Chuva a tarefa não foi
difícil: pois não passa uma moça solteira algumas horas da noite no quarto de
um rapaz? É possível imaginar maior imoralidade? É verdade que na peça eles
nada fazem além de conversar e se beijar. Mas aí é que está a cilada: e as
cenas entre um quadro e outro, entre o princípio e o fim da conversa, omitidos
vergonhosamente pelo autor? Haverá coisa mais escabrosa do que semelhante
omissão? Ora acontece que, na teoria da literatura, nós críticos, aprendemos
humildemente que trecho algum pode ser compreendido fora do seu contexto,
inclusive histórico. Cada escola, cada gênero, cada período tem suas regras,
seus padrões. O Juizado não estaria talvez errado em suas maliciosas suposições
quanto ao que se teria passado a portas fechadas, se Richard Nash fosse um
dramaturgo naturalista, não vendo no homem e na mulher senão o macho e a fêmea.
Mas a peça não é esse drama. Não somos nós que o afirmamos, é o autor, e no
próprio programa do espetáculo, ao aconselhar o encenador: “Não se deve
esquecer por um momento sequer que se trata de um romance”; “A este respeito
deve haver, sem contudo fugir à realidade, uma espécie de beleza romântica nas
relações entre todos os personagens”; “Se o diretor puder ver tudo isto romanticamente
– como Lizzie o vê”; etc., etc. Não alegaremos, portanto, em defesa da peça,
que Lizzie, na manhã seguinte à famosa noite, não hesita em aceitar a mão de
outro homem, sem dar mostras de qualquer perturbação moral (que
desavergonhada!, terá concluído o censor). Nem que seu pai sabia que ela lá
estava, sem ver qualquer mal nisso (mas que libertino!). Não alegaremos nada,
não daremos nenhuma importância a nenhum pormenor deste tipo, porque a peça,
toda ela coloca-se voluntariamente em outro plano. O fazedor de chuva, se é que
o Juizado não percebeu, não é propriamente um homem, que possa fazer mal às
mocinhas. É um mito. É um símbolo da poesia e do lirismo, da vida plena e confiante. É o grão de loucura necessário a
todo homem. Por isso não chega a ter nome, por isso não sabemos de onde vem e
para onde vai. O que Lizzie busca ao seu lado não é uma satisfação carnal mas
uma satisfação psicológica profunda: ter a certeza – ou a ilusão, se quiserem –
de que não é feia, de que pode ser desejada por alguém. O beijo é a prova de
sua maturidade como mulher: pela primeira vez ela acredita em si mesma, em sua
própria feminilidade. E por que o autor exige que ela se vá, resolutamente, ao
quarto do rapaz? Porque o obstáculo a vencer é a má-fé dos outros, são os
preconceitos, é o medo, a prudência e a sabedoria excessiva, tudo que nos tolhe
e inibe, reduzindo-nos a uma concepção mesquinha, pobre, pouco generosa da vida
e das relações humanas. Que a peça haja sido censurada e julgada exatamente por
esse tipo de mentalidade seca e puritana que pretende combater – eis o maior
paradoxo de todo o episódio. Parece que os milagres de compreensão, os fazedores
de chuva, tão frequentes em cena, são bem mais raros aqui fora – principalmente
entre os censores.
Programa do espetáculo |
VISITE TAMBÉM
WWW.BLOGDOVICTORINO.BLOGSPOT.COM