Ruthinéa de Moraes e Nize Silva (fotógrafo desconhecido) |
Trechos de crítica
O Estado de S. Paulo
– por Sérgio Viotti – 7/6/1970
O BOM SARGENTO LEONARDO
Para voltar a tocar na mesma tecla,
no teatro nacional, existe um vazio tristonho no que se refere aos autores do
século passado. Da morte de Martins Fontes até o aparecimento de Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues
alastra-se um século de desolação teatral. Claro que houve, aqui e alí, algumas
ilhotas afoitas erguendo suas cabeças frágeis acima da linha das águas
desabitadas. Forma-se um arquipélago teatral. As peças não chegam a criar uma
unidade histórico-dramática, isoladas em si mesmas, com suas qualidades e
defeitos avivados pelo próprio isolamento da criação esporádica.
Nenhuma solução para o que,
obviamente, não tem solução, pode ser apresentada. Se não existe uma
dramaturgia tradicional, não se pode inventar uma, ou importar peças da mesma
língua da mãe-pátria (o que os americanos não hesitaram fazer no passado;
hesitam agora). Porém se não há solução, há, parece-me, pelo menos um caminho
que pode ser seguido: adaptar. Se a nossa literatura continua sendo de uma
riqueza invejável, por que não arrancar dela as peças de teatro que não foram
escritas? Poderá não ser a mais nobre das soluções. Certamente não é a ideal.
Mas o gato caçador, na ausência de um cão que falte poderá suprir o nosso
teatro com alguma coisa que ele não tem.
Francisco Pereira da Silva, que o
Nordeste deu ao Rio de Janeiro, é um autor para quem o regionalismo e as
ambiências sociais da pequena burguesia não tem mistérios. Os reflexos deste
conhecimento de causas podem ser encontrados facilmente nas suas peças (algumas
premiadas) as quais, infelizmente, não chegam a São Paulo. Pode-se lamentar que
ao se conservar demasiadamente fiel ao original de Manuel Antônio de Almeida,
Francisco Pereira da Silva tenha perdido várias oportunidades de dinamizar a
peça e libertá-la de uma fórmula que o obrigou a manter a si e aos seus
personagens amarrados à pracinha carioca do tempo em que havia reis por estas
bandas, mesmo assim (e não fui correndo reler o original de Antônio de Almeida
para criar ideias de como deveria ser a adaptação, preferindo aceitá-la, ou
não, pelo que é) ele conseguiu dar aos atores e ao diretor um punhado de tipos
dos mais gostosos, de uma brasilidade facilmente identificável. Aí estão dois
pontos básicos para dar a atores facilidade de criação imediata e a
espectadores possibilidade de identificação total. Ambos foram explorados com o
máximo rendimento. Sem mensagem e sem pretensões, teatro ingênuo, a adaptação
tem a qualidade de preservar uma atmosfera sem pretender projetá-la no presente
nosso, dentro de uma visão crítica inaceitável aqui. Claro: não é teatro agora.
É teatro ontem do mais puro. O que o salva é a pureza. Quem não gosta, pior.
Não se pode querer que o mundo de Manuel Antônio de Almeida mude no que não é
só porque não existe mais. Mundo-museu, concordo. Mas quem, senão o Teatro
Popular do Sesi, poderia dar-se ao luxo de recriá-lo?
A questão aqui é outra: O TPS é o
único (vejam bem: o único) teatro regular e totalmente subvencionado que existe
no Brasil. Gratuito. Com uma folha de serviços e espectadores das mais
respeitáveis (e invejável). A sua função primeira é dar teatro popular, i.e., acessível, a um público que
desconhece teatro, não tem “posição” tomada diante do fenômeno cultural e que,
em sua quase totalidade, só viu teatro pela primeira vez quando ganhou entrada
do Sesi. Assim, por que esperar, em lugar do Sargento Leonardo, o Baal de Brecht? O TPS, sem pretender
concorrer com o teatro puramente comercial (e a vanguarda é comercial porque
precisa de dinheiro para sobreviver) alimenta com teatro fácil um público que
não tem poder aquisitivo para frequentar outros teatros paulistas. Se a esse
público se der o “último grito” europeu ou americano ele deixará de ir ao
teatro. O curioso é que entre quase um milhão de espectadores que o TPS já teve
desde sua criação há uma ausência total de burgueses médios que frequentam os
outros teatros. O mesmo motivo que faz o brasileiro desconfiar do lugar mais
barato ao fundo da plateia (se bem que pague por ele quando a peça vem de algum
além-mar!) faz com que desconfie do ingresso gratuito do Sesi. O burguês, via
de regra, não será encontrado na plateia do Taib. O que é uma pena. Se ele
soubesse o que estava perdendo, teria ido antes. Se avaliar o que está
perdendo, irá agora ver o Sargento Leonardo em suas peripécias amorosas, nos
tempos em que o Rio de Janeiro era vice-realmente pacata.
Eu cá por mim, prefiro mil vezes ver
uma peça nossa do que um mau Goldoni, Marivaux ou Sheridan. E prefiro a
quadratura do Sargento pelo que é do que pelo espetáculo pra-frentista que poderia
ser. Prefiro porque vi bons atores alastrando alegria de ser brasileiramente
autênticos num palco autenticamente popular. Osmar Rodrigues Cruz conseguiu a
meia dúzia ideal de primeiros atores para seis divertidos primeiros papéis de
comédia.[...].
Aí está: um Sargento simples,
alegre, divertido, colorido, bem musicado, cheio de ação e marotices. Um Liolá
bem feito me teria dado o mesmo prazer. Uma única tristeza: que os burgueses
motorizados continuem desconfiando e não se dêem o prazer de conhecer de perto
o que vai por aquela pracinha carioca dos tempos dos reis.
(in Osmar
Rodrigues Cruz Uma Vida no Teatro Hucitec 2001)
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