segunda-feira, 27 de julho de 2015

Capítulo 2 - primeira parte


As bases para minha proposta


As bases para minha proposta foram encontradas na busca e estudo constante e no meu exercício como atriz no Teatro Popular do Sesi (TPS), companhia estável em São Paulo, ao longo de vinte anos ininterruptos. A atuação numa companhia estável permite que se pesquise e se experimente toda uma gama de técnicas e estimula o estudo e o aprofundamento da profissão de atriz, propiciando, com isso, uma análise constante. Em meus estudos buscava uma pré-preparação para o ator, algo que o estruturasse para esse trabalho diário e repetitivo, fazendo com que ele não se tornasse mecânico, mesmo depois de dois anos de representação de um mesmo personagem. A observação e constatação de que nos moldes do TPS quase todos os atores se deixavam levar pela mecanização fez com que eu aprofundasse a minha busca. 

A teoria de Stanislávski foi sempre o alvo preferido de modificações tanto de diretores como também de professores, sendo fracionada ou reduzida, tornou-se a base de todo curso de preparação de atores e foi a formação da grande maioria dos atores brasileiros. Não se questiona aqui o mérito ou demérito das interpretações, porque algumas foram feitas adaptando-se ao objetivo a ser alcançado ou visando o enquadramento à cultura na qual a teoria iria se desenvolver. O assim chamado “método” Stanislávski constitui-se de um sistema fechado para a formação do ator que diretamente irá criar o seu personagem, ou seja, um papel determinado, por isso é chamado originariamente de sistema. Porque, a criação de um personagem pressupõe uma montagem, dentro de uma peça determinada obedecendo a uma linha dada por um diretor. Foi inclusive desse modo que Stanislávski criou o sistema, dentro de um teatro com um elenco e com textos de Tchekov. Acredito que nunca tenha havido um sistema tão eficiente para o ator, tão completo e tão rico que consiga abranger o físico, o emocional e o intelectual do ator. A abordagem brasileira do sistema, porém, foi sempre focada mais na análise da psicologia do personagem, no aspecto emocional do papel e assim quase todos os atores aprenderam a representar, aliando a intuição e improvisação natas do ator brasileiro. Nossa adaptação brasileira, embora seja eficaz, esqueceu-se de que Stanislávski deixou-nos um sistema completo que privilegia o desenvolvimento global do ator.

Em sua teoria há o termo muito utilizado de “viver o papel” que para nós sempre foi tomado como encarnar o personagem. Na sua raiz o significado de tal expressão é acreditar, vivenciar, experimentar uma nova forma de expressão que é o personagem, não ter medo de tomar o corpo como alicerce para a representação. Utilizar-se da imaginação, construir um propósito para a ação, que é o cerne da atuação, por meio do “se” que cria hipóteses para o personagem. A concentração da atenção na criação e antes de tudo no mundo a sua volta é o verdadeiro material do ator. As “ações físicas” que dentro de circunstâncias dadas exercem influência na emoção adquirindo significados novos e não ao contrário. Fazer uso da memória das emoções como acessório e não como regra única.

Como um sistema extremamente organizado, existem as “bandeiras” levantadas por Stanislávski que são:

A “psicotécnica” – que é o estado interior criador envolvendo o sentido de verdade, a memória afetiva, a atenção, a imaginação, as unidades da peça e os objetivos. O super objetivo que é a perspectiva do personagem dentro da peça e o seu propósito final. É ter lógica e coerência de sentimentos para uma boa caracterização interior.

A “técnica exterior” – que consiste no relaxamento dos músculos, treinamento expressivo do corpo, desenvolvimento da plasticidade, treinamento da voz e fala e do ritmo externo ou tempo. É ter lógica e coerência nas ações físicas para uma boa caracterização exterior.[1]   

Boleslavski, aluno de Stanislávski, condensou com muita propriedade o sistema de seu professor e baseia-se em cinco princípios retratados em seis lições: a concentração, a memória da emoção, a ação dramática, a observação e o ritmo. Numa linguagem simples expõe uma proposta de iniciação para o ator.[2] Já Michael Chekhov expõe mais detalhadamente o processo interior do ator através de exercícios.[3] Stela Adler adaptou o sistema a sua realidade, enfatizando e incorporando a importância da função social do ator.[4] Com Lee Strasberg o sistema foi formalizado e recriado como o método, fazendo grande sucesso nos Estados Unidos da América (EUA) por trazer em seu âmago o estilo naturalista de representar que serviu e serve ao cinema, assim como ao teatro, como fórmula infalível e rápida para a criação de um personagem.[5]

Em nenhum momento, em nenhum dos textos de Stanislávski, ou de seus discípulos e alunos mais próximos, encontra-se menção para atirar-se ao personagem, deixar-se levar por ele. Encontra-se sim um roteiro minucioso e cuidadoso para a preparação e criação do ator, no qual são trabalhados organicamente a emoção, a ação e o pensamento. Portanto, conclui-se que o sistema requer, para compreendê-lo inteiramente, um alicerce intelectual, um conhecimento profundo de psicologia e de literatura dramática, embora, por outro lado, seja simples exatamente pelo fato de ser um sistema em que tudo é interligado. Um sistema deve ser respeitado e estudado em todas as suas partes, pois a sua fragmentação padece de ser interpretada como a parte significando o todo.

 

Iniciei no teatro fazendo teatro, trabalhei com grandes atores e atrizes e um grande diretor (Osmar Rodrigues Cruz), os quais foram meus mestres, mesmo aqueles que me ensinaram como não fazer teatro; enfim o palco foi minha escola. Para não ficar em desvantagem tive de estudar as grandes técnicas e a minha base foi também o sistema de Stanislávski, pois todos representavam pelo método. Acredito que como todos os atores assimilei o método pelo seu aspecto psicológico e a memória das emoções tornou-se mágica para mim, usei e abusei dela indo buscar situações, às vezes extremamente profundas para recriar no palco. Era um suicídio psicológico, uma dilaceração cruel e masoquista, mas que surtia um resultado extremamente satisfatório. Por vezes, ficava coletando imagens, na rua, nas revistas, na televisão, que se relacionavam com o meu papel, num processo maníaco. Eu encarnava o personagem literalmente, todos gostavam muito! Porém, um dia adoeci por isso. Sempre representei os personagens de crianças e adolescentes, ingressei no teatro com dezessete anos e sempre tive um tipo magro e de estatura baixa. Esse processo de criação mergulhado na pesquisa da memória foi muito eficiente porque tinha próxima de mim uma infância e adolescência rica em conflitos. Quando representei crianças, como o Juquinha de O Noviço de Martins Pena, era como se aquela felicidade infantil, leveza e traquinagens se introjetassem. Em O Poeta da Vila e Seus Amores de Plínio Marcos aquela Lindaura menina apaixonada por Noel Rosa foi um mergulho incrível na pré-adolescência e toda essa loucura surtiu tanto resultado que ganhei mais falas do autor! Até chegar à também pré-adolescente Ritinha de Onde Canta o Sabiá de Gastão Tojeiro. Bem, eu já completara trinta e três anos, os meus vinte anos já haviam passado sem percebê-los e eu achava um grande desafio fazer essa “moleca” no palco. Sempre tive uma grande preocupação com a preparação corporal, quanto a isso não era problema. Então, fiz um mergulho ainda mais profundo na minha memória, nos tempos de colégio, dos namoricos, observando as adolescentes na rua, seu comportamento irrequieto, seus hormônios em ebulição. Três meses de trabalho delicioso na criação de Ritinha, de repente constatei que há dois meses não menstruava, meus seios estavam pequenos, meu quadril afinara, para alegria do figurinista que não tinha de esconder nada nos “vestidinhos” da Ritinha. Meu corpo já não era o de uma mulher de trinta e três anos. Fui ao médico e ele constatou as alterações físicas visíveis e, através de exames, constatou alterações internas, mas nada patológico. Diante disso, não me prescreveu nenhuma medicação e pediu-me que aguardasse mais um mês. Como estava em vésperas de estréia achei ótimo não ter de ingerir nenhuma medicação e aproveitei para entregar o convite para ele, grande apreciador das montagens do TPS. Após a estréia retornei ao consultório e ele estupefato disse-me que havia encontrado a causa para o meu “distúrbio”. Quando me viu no palco ele não acreditou que eu fosse a mesma mulher que ele sempre via, eu era “realmente” a Ritinha! Nesse momento ele se lembrou de casos de gravidez psicológica em que existem reações físicas e associou ao meu caso no sentido contrário. De tanto me preocupar em criar com verdade, de ser o personagem, enfim, de encarnar a Ritinha, eu havia mandado uma mensagem ao cérebro de interrupção e regressão do processo natural do corpo adulto, pois pré-adolescentes da época da peça não menstruavam! Fiquei estupefata, já havia lido sobre casos assim, mas não acreditava que tudo aquilo estivesse acontecendo comigo. Como ele havia me indicado uma conversa com um especialista, fui buscar um amigo, médico-psiquiatra que fora meu colega na Filosofia. Ele confirmou a opinião do médico, inquiriu-me sobre o meu processo de criação, e como ele havia assistido ao espetáculo, aconselhou-me a buscar o caminho de volta no meu inconsciente reafirmando a condição real e presente. Esse era um caso de identificação profunda, quase uma transferência de personalidade, no jargão freudiano, no meu caso um início de uma patologia que se centra na idéia de não querer ser adulto, de voltar a ser criança. Fiquei muito assustada com o que havia feito, questionei-me quanto ao meu talento, me perdi em pensamentos, mas fiz o que ele mandara e curei-me!

Após a observação em mim mesma dos danos obtidos por uma identificação exacerbada com o personagem, bem como de uma leitura errônea do método, comecei a observar os outros atores e aqueles que padeciam e já padeceram desse mal. No teatro os casos eram sempre contados com glória e certo orgulho pelo personagem ter se incorporado tão bem e dos resultados no palco, sem sequer tomar conhecimento do restante da representação! Na televisão, onde essa vivência do personagem é atrelada ao sucesso imediato, é mais evidente o dano que isso faz ao ator/atriz, tornando-o quase uma cópia fiel do personagem e tomando as ações deste para ele mesmo, fazendo da sua vida a vida do personagem. Quanto mais sucesso mais incorporação, mais vivência do personagem, mais confusão interior. Psicologicamente a maneira de pensamento e expressão se alteram, denotando alteração no comportamento. Se as emoções do personagem são violentas e ainda são assimiladas, por serem as mais primitivas no ser humano, mais são expressas na vida cotidiana do ator.

Portanto, a necessidade de se conhecer, de saber de seus limites, de poder discernir e saber identificar o personagem e separar-se dele, são primordiais para uma atuação saudável. Quanto mais se tem o conhecimento e o domínio de si mesmo e de sua psicologia, mais se poderá dar ao personagem, mais poderá fazer para a sua construção ser perfeita. O equilíbrio de si mesmo é que pode trazer realidade ao personagem, pois é com inteligência, emoção e intuição que se pode construí-lo, não somente procurando dentro de si mesmo o que mais se parece com o personagem e pronto. Isso é fácil, porém perigoso e danoso à saúde mental de qualquer ator/atriz, os fatos expostos todos os dias nos jornais atestam bem os resultados equivocados dessa identificação doentia.
   
Depois da tempestade fui à busca de um método que havia lido há muito tempo, porém não havia me aprofundado por não ser usado no Brasil. Fui à busca de Bertolt Brecht. Resolvi reler e estudar toda a sua obra dramatúrgica e teórica, biografias, comentaristas, aprofundando-me no seu estudo para o ator. Não que tenha renegado Stanislávski ou deixado apartado seu sistema, pelo contrário, ao estudar Brecht voltei-me a ele com outros olhos, pois Brecht o toma como base. Constatei apenas que não se pode paralisar em uma só técnica, num só sistema. Talvez esse tenha sido o meu erro e de muitos outros, mas serviu como incentivo a uma busca incessante.

Se em Stanlislávski o que domina é o naturalismo, em Brecht encontramos o realismo. Para poder entendê-lo precisamos buscar Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770/1831) e Karl Marx (1818/1883), pois sua teoria vem diretamente dos estudos de Hegel, que também influenciou Marx. Resumidamente, a dialética hegeliana tem como princípio que o homem somente reconhece o mundo material, exterior a ele, sendo acessível à sua consciência, por meio do conhecimento e assim esse mesmo mundo torna-se receptivo à sua influência. Esse mundo, o mundo material, é a realidade, o real, onde o homem sofre sua influência, apreende por meio do conhecimento e é inserido na história. O processo é sempre de mudança da realidade, mudança constante efetivada no ir e vir de conhecimento e influência, de apreensão e interferência, resultado de conflito e luta. O homem estando inserido nessa realidade, no mundo, reflete o processo e mudança desse mundo em si mesmo, através do desenvolvimento de sua consciência e é fator preponderante de mudança de si e da realidade que o rodeia. O desenvolvimento cada vez maior de sua consciência na realidade produz liberdade e o afasta da mera necessidade do meio que o rodeia. Ele pode agir nesse meio, pode influenciá-lo, pode pensá-lo e assim age dialeticamente. Foi nessa essência da dialética hegeliana que a filosofia marxista se baseou criando um sistema de pensamento e de economia.

O teatro de Brecht é um vasto campo que inclui dramaturgia, teoria e técnica para o ator, alicerçados na dialética hegeliana-marxista, portanto numa filosofia que inclui uma visão da história como processo e do homem como fator de mudança da realidade. Para tanto concebe uma técnica para o ator que pressupõe uma nova visão de mundo, o ator para Brecht tem de ser, antes de tudo, um homem consciente de seu lugar no mundo, compreendendo e conhecendo a história como processo e afeito a produzir mudanças. Sem conter no seu cerne essas prerrogativas, dificilmente ele poderá assimilar a teoria e técnica brechtianas. O teatro transforma-se em meio de mudança e transformação da sociedade, por isso a obra de Brecht é global, é mais do que um sistema no qual dramaturgia, teoria e técnica estão interligadas.

Ao conceber o seu maior texto teórico, Pequeno Organon [6], toma como base para a sua antítese a Poética de Aristóteles criando um sistema antiaristotélico onde preconiza a não identificação do ator com a platéia, rejeitando a empatia e, conseqüentemente, a identificação da platéia com o ator por meio da catarse aristotélica. Toma de Hegel o princípio do estranhamento, pois a realidade de tão conhecida torna-se desconhecida para nós. Ao buscar esse distanciamento Brecht se remete a Diderot, o qual sobrepõe a inteligência à sensibilidade, propondo que o ator não viva inteiramente o papel.[7] Brecht percebe isso e toma dele o germe que já havia da teoria do distanciamento. Muitos teóricos, diretores e atores se opuseram ao conceito de estranhamento ou distanciamento, pois viam nele uma anulação completa da emoção. Constata-se que não se trata disso, o ator pode preparar seu papel e estudar a sua psicologia, buscar as emoções do personagem, porém terá, primeiramente, de fazer uma leitura crítica e objetiva de seu personagem, situando a sua função social dentro da peça. Brecht não veio para anular, mas para acrescentar, somar à técnica do sistema. Senão seria estranho que ele buscasse em Vakhtângov, aluno de Stanislávski, muitos de seus conceitos para o ator. Vakhtângov privilegia a ação, a atuação sobre o sentimento, para ele toda a ação no palco deve ter como base o “real, imediato e concreto”, como os atores da Commedia dell’Arte que eram próximos da realidade do seu público, facilitando com isso as bases do improviso.[8] Daí a necessidade de o ator estar inserido e participante em seu meio, na sociedade em que vive, pois é dela que retira seu material para criação. Se o ator, por outro lado, toma o personagem e sua criação de forma passiva, está se alienando da sua verdadeira função que é a criação, a ação e a transformação. A alienação é a anulação da própria humanidade do homem, separando-o da natureza, não compreendendo o mundo como transitório, em constante mudança e movimento, assim como o próprio ser do homem, como a arte do ator e tudo o que faz parte desse mundo.  

Nessa atuação consciente inclui-se o “gestus” do ator e do espetáculo como um conjunto que inclui a atitude corporal, voz e expressão dentro do espetáculo. É como se o ator concebesse seu personagem de fora para dentro tomando por base o meio social deste, “citando-o” e não reproduzindo suas atitudes corporais. Sabemos que pessoas de meios sociais diferentes, pensam, sentem e agem de forma diferente, embora sejam iguais em essência. Porém, o meio social as molda de forma diversa, através do trabalho que exercem, do bairro onde moram, de tudo aquilo que fazem, muito mais do que sentem ou pensam, pois pensar e sentir, na verdade, são produtos do meio social em que vivem.

Portanto, o conhecimento profundo da natureza humana, da interioridade de si mesmo, antes até de ser ator, proposta por Stanislávski como exercício à preparação do ator, se completa ao conhecimento e consciência social de ser no mundo em Brecht. Não se percebe cisão, mas complementação, sendo alicerces seguros e confiáveis.     



[1] STANISLAVSKI, Constantin. Construção do Personagem. RJ, Civilização Brasileira, 1970, pg. 287
[2] Ver BOLELAVSKI, Richard. A arte do ator. SP, Ed. Perspectiva, 1992
[3] Ver CHEKHOV, Michael. Para o ator. SP, Ed. Martins Fontes, 1996
[4] Ver ADLER, Stella. Técnica de representação teatral. RJ, Civilização
    Brasileira, 1992

[5] Ver STRASBERG, Lee. Um sonho de paixão. RJ, Ed. Civilização Brasileira, 1990
[6] Brecht, Bertolt. Teatro dialético. RJ, Civilização Brasileira,1967, pg. 181

[7] Ver DIDEROT, Denis. Paradoxo sobre o comediante. Coleção Os
    Pensadores, SP, Ed. Abril, 1979

[8] GORCHAKOV, N.. Lecciones de regisseur Vajtangov. Buenos Aires, Editorial Quetzal, s/d, pg. 21

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