As bases para minha proposta
As bases para minha proposta foram encontradas na busca e estudo constante e no meu exercício como atriz no Teatro Popular do Sesi (TPS), companhia estável em São Paulo, ao longo de vinte anos ininterruptos. A atuação numa companhia estável permite que se pesquise e se experimente toda uma gama de técnicas e estimula o estudo e o aprofundamento da profissão de atriz, propiciando, com isso, uma análise constante. Em meus estudos buscava uma pré-preparação para o ator, algo que o estruturasse para esse trabalho diário e repetitivo, fazendo com que ele não se tornasse mecânico, mesmo depois de dois anos de representação de um mesmo personagem. A observação e constatação de que nos moldes do TPS quase todos os atores se deixavam levar pela mecanização fez com que eu aprofundasse a minha busca.
A teoria de Stanislávski foi sempre o alvo preferido de modificações tanto de diretores como também de professores, sendo fracionada ou reduzida, tornou-se a base de todo curso de preparação de atores e foi a formação da grande maioria dos atores brasileiros. Não se questiona aqui o mérito ou demérito das interpretações, porque algumas foram feitas adaptando-se ao objetivo a ser alcançado ou visando o enquadramento à cultura na qual a teoria iria se desenvolver. O assim chamado “método” Stanislávski constitui-se de um sistema fechado para a formação do ator que diretamente irá criar o seu personagem, ou seja, um papel determinado, por isso é chamado originariamente de sistema. Porque, a criação de um personagem pressupõe uma montagem, dentro de uma peça determinada obedecendo a uma linha dada por um diretor. Foi inclusive desse modo que Stanislávski criou o sistema, dentro de um teatro com um elenco e com textos de Tchekov. Acredito que nunca tenha havido um sistema tão eficiente para o ator, tão completo e tão rico que consiga abranger o físico, o emocional e o intelectual do ator. A abordagem brasileira do sistema, porém, foi sempre focada mais na análise da psicologia do personagem, no aspecto emocional do papel e assim quase todos os atores aprenderam a representar, aliando a intuição e improvisação natas do ator brasileiro. Nossa adaptação brasileira, embora seja eficaz, esqueceu-se de que Stanislávski deixou-nos um sistema completo que privilegia o desenvolvimento global do ator.
Em sua teoria há o termo muito utilizado de “viver o papel” que para nós sempre foi tomado como encarnar o personagem. Na sua raiz o significado de tal expressão é acreditar, vivenciar, experimentar uma nova forma de expressão que é o personagem, não ter medo de tomar o corpo como alicerce para a representação. Utilizar-se da imaginação, construir um propósito para a ação, que é o cerne da atuação, por meio do “se” que cria hipóteses para o personagem. A concentração da atenção na criação e antes de tudo no mundo a sua volta é o verdadeiro material do ator. As “ações físicas” que dentro de circunstâncias dadas exercem influência na emoção adquirindo significados novos e não ao contrário. Fazer uso da memória das emoções como acessório e não como regra única.
Como
um sistema extremamente organizado, existem as “bandeiras” levantadas por
Stanislávski que são:
A
“psicotécnica” – que é o estado interior criador envolvendo o sentido de
verdade, a memória afetiva, a atenção, a imaginação, as unidades da peça e os
objetivos. O super objetivo que é a perspectiva do personagem dentro da peça e
o seu propósito final. É ter lógica e coerência de sentimentos para uma boa
caracterização interior.
A “técnica exterior” – que consiste no relaxamento dos músculos, treinamento expressivo do corpo, desenvolvimento da plasticidade, treinamento da voz e fala e do ritmo externo ou tempo. É ter lógica e coerência nas ações físicas para uma boa caracterização exterior.[1]
Boleslavski, aluno de Stanislávski, condensou com muita propriedade o sistema de seu professor e baseia-se em cinco princípios retratados em seis lições: a concentração, a memória da emoção, a ação dramática, a observação e o ritmo. Numa linguagem simples expõe uma proposta de iniciação para o ator.[2] Já Michael Chekhov expõe mais detalhadamente o processo interior do ator através de exercícios.[3] Stela Adler adaptou o sistema a sua realidade, enfatizando e incorporando a importância da função social do ator.[4] Com Lee Strasberg o sistema foi formalizado e recriado como o método, fazendo grande sucesso nos Estados Unidos da América (EUA) por trazer em seu âmago o estilo naturalista de representar que serviu e serve ao cinema, assim como ao teatro, como fórmula infalível e rápida para a criação de um personagem.[5]
Em nenhum momento, em nenhum dos textos de Stanislávski, ou de seus discípulos e alunos mais próximos, encontra-se menção para atirar-se ao personagem, deixar-se levar por ele. Encontra-se sim um roteiro minucioso e cuidadoso para a preparação e criação do ator, no qual são trabalhados organicamente a emoção, a ação e o pensamento. Portanto, conclui-se que o sistema requer, para compreendê-lo inteiramente, um alicerce intelectual, um conhecimento profundo de psicologia e de literatura dramática, embora, por outro lado, seja simples exatamente pelo fato de ser um sistema em que tudo é interligado. Um sistema deve ser respeitado e estudado em todas as suas partes, pois a sua fragmentação padece de ser interpretada como a parte significando o todo.
Depois da tempestade fui à busca de um método que
havia lido há muito tempo, porém não havia me aprofundado por não ser usado no
Brasil. Fui à busca de Bertolt Brecht. Resolvi reler e estudar toda a sua obra
dramatúrgica e teórica, biografias, comentaristas, aprofundando-me no seu
estudo para o ator. Não que tenha renegado Stanislávski ou deixado apartado seu
sistema, pelo contrário, ao estudar Brecht voltei-me a ele com outros olhos,
pois Brecht o toma como base. Constatei apenas que não se pode paralisar em uma
só técnica, num só sistema. Talvez esse tenha sido o meu erro e de muitos
outros, mas serviu como incentivo a uma busca incessante.
Se em Stanlislávski o que domina é o naturalismo, em
Brecht encontramos o realismo. Para poder entendê-lo precisamos buscar Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770/1831) e Karl Marx (1818/1883), pois sua teoria
vem diretamente dos estudos de Hegel, que também influenciou Marx.
Resumidamente, a dialética hegeliana tem como princípio que o homem somente
reconhece o mundo material, exterior a ele, sendo acessível à sua consciência,
por meio do conhecimento e assim esse mesmo mundo torna-se receptivo à sua
influência. Esse mundo, o mundo material, é a realidade, o real, onde o homem
sofre sua influência, apreende por meio do conhecimento e é inserido na
história. O processo é sempre de mudança da realidade, mudança constante
efetivada no ir e vir de conhecimento e influência, de apreensão e
interferência, resultado de conflito e luta. O homem estando inserido nessa
realidade, no mundo, reflete o processo e mudança desse mundo em si mesmo,
através do desenvolvimento de sua consciência e é fator preponderante de
mudança de si e da realidade que o rodeia. O desenvolvimento cada vez maior de
sua consciência na realidade produz liberdade e o afasta da mera necessidade do
meio que o rodeia. Ele pode agir nesse meio, pode influenciá-lo, pode pensá-lo
e assim age dialeticamente. Foi nessa essência da dialética hegeliana que a
filosofia marxista se baseou criando um sistema de pensamento e de economia.
O teatro de Brecht é um vasto campo que inclui
dramaturgia, teoria e técnica para o ator, alicerçados na dialética
hegeliana-marxista, portanto numa filosofia que inclui uma visão da história
como processo e do homem como fator de mudança da realidade. Para tanto concebe
uma técnica para o ator que pressupõe uma nova visão de mundo, o ator para
Brecht tem de ser, antes de tudo, um homem consciente de seu lugar no mundo,
compreendendo e conhecendo a história como processo e afeito a produzir
mudanças. Sem conter no seu cerne essas prerrogativas, dificilmente ele poderá
assimilar a teoria e técnica brechtianas. O teatro transforma-se em meio de
mudança e transformação da sociedade, por isso a obra de Brecht é global, é
mais do que um sistema no qual dramaturgia, teoria e técnica estão interligadas.
Ao conceber o seu maior texto teórico, Pequeno
Organon [6],
toma como base para a sua antítese a Poética de Aristóteles criando um
sistema antiaristotélico onde preconiza a não identificação do ator com a
platéia, rejeitando a empatia e, conseqüentemente, a identificação da platéia
com o ator por meio da catarse aristotélica. Toma de Hegel o princípio do
estranhamento, pois a realidade de tão conhecida torna-se desconhecida para
nós. Ao buscar esse distanciamento Brecht se remete a Diderot, o qual sobrepõe
a inteligência à sensibilidade, propondo que o ator não viva inteiramente o
papel.[7] Brecht
percebe isso e toma dele o germe que já havia da teoria do distanciamento.
Muitos teóricos, diretores e atores se opuseram ao conceito de estranhamento ou
distanciamento, pois viam nele uma anulação completa da emoção. Constata-se que
não se trata disso, o ator pode preparar seu papel e estudar a sua psicologia,
buscar as emoções do personagem, porém terá, primeiramente, de fazer uma
leitura crítica e objetiva de seu personagem, situando a sua função social
dentro da peça. Brecht não veio para anular, mas para acrescentar, somar à
técnica do sistema. Senão seria estranho que ele buscasse em Vakhtângov, aluno
de Stanislávski, muitos de seus conceitos para o ator. Vakhtângov privilegia a
ação, a atuação sobre o sentimento, para ele toda a ação no palco deve ter como
base o “real, imediato e concreto”, como os atores da Commedia
dell’Arte que eram próximos da realidade do seu público,
facilitando com isso as bases do improviso.[8]
Daí a necessidade de o ator estar inserido e participante em seu meio, na
sociedade em que vive, pois é dela que retira seu material para criação. Se o
ator, por outro lado, toma o personagem e sua criação de forma passiva, está se
alienando da sua verdadeira função que é a criação, a ação e a transformação. A
alienação é a anulação da própria humanidade do homem, separando-o da natureza,
não compreendendo o mundo como transitório, em constante mudança e movimento,
assim como o próprio ser do homem, como a arte do ator e tudo o que faz parte
desse mundo.
Nessa atuação consciente inclui-se o “gestus” do
ator e do espetáculo como um conjunto que inclui a atitude corporal, voz e
expressão dentro do espetáculo. É como se o ator concebesse seu personagem de
fora para dentro tomando por base o meio social deste, “citando-o” e não
reproduzindo suas atitudes corporais. Sabemos que pessoas de meios sociais
diferentes, pensam, sentem e agem de forma diferente, embora sejam iguais em
essência. Porém, o meio social as molda de forma diversa, através do trabalho
que exercem, do bairro onde moram, de tudo aquilo que fazem, muito mais do que
sentem ou pensam, pois pensar e sentir, na verdade, são produtos do meio social
em que vivem.
Portanto, o conhecimento profundo da natureza
humana, da interioridade de si mesmo, antes até de ser ator, proposta por
Stanislávski como exercício à preparação do ator, se completa ao conhecimento e
consciência social de ser no mundo em Brecht. Não se percebe cisão, mas
complementação, sendo alicerces seguros e confiáveis.
[1] STANISLAVSKI,
Constantin. Construção do Personagem. RJ, Civilização Brasileira, 1970, pg. 287
[2] Ver BOLELAVSKI,
Richard. A arte do ator. SP, Ed. Perspectiva, 1992
[3]
Ver CHEKHOV, Michael. Para o ator. SP, Ed. Martins Fontes, 1996
[5]
Ver STRASBERG, Lee. Um sonho de paixão. RJ, Ed. Civilização Brasileira, 1990
[6] Brecht, Bertolt. Teatro dialético. RJ,
Civilização Brasileira,1967, pg. 181
[8] GORCHAKOV, N..
Lecciones de regisseur Vajtangov. Buenos Aires, Editorial Quetzal, s/d, pg. 21
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