Nize Silva |
Trechos de crítica
O Estado de S. Paulo
– por Décio de Almeida Prado – 20/06/1965
Continua o
Teatro Popular do Sesi na admirável missão a que se voltou. Oferecer ao público
as melhores peças do repertório universal, sem nada pedir em troca. Depois de
Dostoiévski, Marivaux. Depois de Marivaux, García Lorca – e sempre
gratuitamente. Seríamos quase levados a concluir contra a evidência dos fatos:
“too good to be true”. A Sapateira
Prodigiosa, entretanto, sem desmerecer, baixa de nível em relação a Caprichos do Amor. Não só por culpa dos
atores ou da direção, mas do próprio passar dos anos, de Yerma e Bodas de Sangue até A Casa de Bernarda Alba. De qualquer
forma, não é difícil reconhecer nesta obra de juventude os grandes temas de
todo o seu teatro: o texto, que é de um Lorca ainda imaturo tecnicamente, sem a
maestria que foi adquirindo da mulher só, abandonada pelo marido ou solteira,
sem proteção todo-poderosa do homem, indispensável material e espiritualmente
nas sociedades patriarcais; os desencontros entre marido e mulher; a
frivolidade e volubilidade femininas; a honra conjugal, encarada como um valor
absoluto; a bisbilhotice típica da vida provinciana (e o próprio Lorca deve ter
sentido em torno de sua vida particular com esse coro babujento dos vizinhos
que retratou de modo tão cruel nesta sua “farsa violenta”); o choque entre o impulso
vital, que leva a “zapaterrilla” a cantar, a namoriscar, a rir, sem ver nisso
nada de mal, e as exigências de uma moral particularmente severa no que diz
respeito às relações entre os dois sexos. A imagem final que nos fica é a mesma
das outras peças: a imagem de uma Espanha dilacerada entre a sensualidade e o
puritanismo, ambos igualmente aguçados e dominadores. A maneira da peça é de
uma lenda popular, como essas histórias contadas por cegos nas feiras, meio,
aliás, de que se serve o “zapatero” para averiguar a fidelidade de sua
“zapatera”. Não falta ao enredo, como se vê, nem mesmo o estratagema mais comum
em tais narrativas: o marido que volta disfarçado para pôr à prova a
honestidade da mulher, injustamente suspeitada. A história da peça é um pouco
de uma megera não domada: o homem descobre que a felicidade conjugal consiste
afinal em fechar os ouvidos aos mexericos, aceitando a esposa tal como é,
agreste e amorosa, leviana e honrada. Ora este enredo propositadamente ingênuo,
quase de teatro de títere, não se completa no palco sem uma qualidade esquiva:
a poesia. [...]. A direção de Osmar Rodrigues Cruz parece-nos falhar em dois
pontos importantes: na compreensão do papel principal e na conjunção do texto
com a dança, no final do primeiro ato. Não há dúvida de que a música, o canto,
o bailado, podem ser incorporados com vantagem à peça mas seria preciso que
houvesse realmente integração dramática e não simples justaposição, como
aconteceu. Bonitos o cenário de Clovis Garcia e os figurinos de Campello Neto,
dando, em conjunto, aquela sensação extraordinária, ao mesmo tempo de
simplicidade e de riqueza de colorido, que é a tonalidade exata para o teatro
de García Lorca. O espetáculo que ocupa o Teatro Maria Della Costa, está de
resto muito bem cuidado materialmente, podendo ser apresentado, perante
qualquer público.
(in Osmar
Rodrigues Cruz Uma Vida no Teatro Hucitec 2001)
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