sábado, 23 de março de 2013

A SAPATEIRA PRODIGIOSA

Nize Silva




Trechos de crítica 
O Estado de S. Paulo – por Décio de Almeida Prado – 20/06/1965

Continua o Teatro Popular do Sesi na admirável missão a que se voltou. Oferecer ao público as melhores peças do repertório universal, sem nada pedir em troca. Depois de Dostoiévski, Marivaux. Depois de Marivaux, García Lorca – e sempre gratuitamente. Seríamos quase levados a concluir contra a evidência dos fatos: “too good to be true”. A Sapateira Prodigiosa, entretanto, sem desmerecer, baixa de nível em relação a Caprichos do Amor. Não só por culpa dos atores ou da direção, mas do próprio passar dos anos, de Yerma e Bodas de Sangue até A Casa de Bernarda Alba. De qualquer forma, não é difícil reconhecer nesta obra de juventude os grandes temas de todo o seu teatro: o texto, que é de um Lorca ainda imaturo tecnicamente, sem a maestria que foi adquirindo da mulher só, abandonada pelo marido ou solteira, sem proteção todo-poderosa do homem, indispensável material e espiritualmente nas sociedades patriarcais; os desencontros entre marido e mulher; a frivolidade e volubilidade femininas; a honra conjugal, encarada como um valor absoluto; a bisbilhotice típica da vida provinciana (e o próprio Lorca deve ter sentido em torno de sua vida particular com esse coro babujento dos vizinhos que retratou de modo tão cruel nesta sua “farsa violenta”); o choque entre o impulso vital, que leva a “zapaterrilla” a cantar, a namoriscar, a rir, sem ver nisso nada de mal, e as exigências de uma moral particularmente severa no que diz respeito às relações entre os dois sexos. A imagem final que nos fica é a mesma das outras peças: a imagem de uma Espanha dilacerada entre a sensualidade e o puritanismo, ambos igualmente aguçados e dominadores. A maneira da peça é de uma lenda popular, como essas histórias contadas por cegos nas feiras, meio, aliás, de que se serve o “zapatero” para averiguar a fidelidade de sua “zapatera”. Não falta ao enredo, como se vê, nem mesmo o estratagema mais comum em tais narrativas: o marido que volta disfarçado para pôr à prova a honestidade da mulher, injustamente suspeitada. A história da peça é um pouco de uma megera não domada: o homem descobre que a felicidade conjugal consiste afinal em fechar os ouvidos aos mexericos, aceitando a esposa tal como é, agreste e amorosa, leviana e honrada. Ora este enredo propositadamente ingênuo, quase de teatro de títere, não se completa no palco sem uma qualidade esquiva: a poesia. [...]. A direção de Osmar Rodrigues Cruz parece-nos falhar em dois pontos importantes: na compreensão do papel principal e na conjunção do texto com a dança, no final do primeiro ato. Não há dúvida de que a música, o canto, o bailado, podem ser incorporados com vantagem à peça mas seria preciso que houvesse realmente integração dramática e não simples justaposição, como aconteceu. Bonitos o cenário de Clovis Garcia e os figurinos de Campello Neto, dando, em conjunto, aquela sensação extraordinária, ao mesmo tempo de simplicidade e de riqueza de colorido, que é a tonalidade exata para o teatro de García Lorca. O espetáculo que ocupa o Teatro Maria Della Costa, está de resto muito bem cuidado materialmente, podendo ser apresentado, perante qualquer público.
(in Osmar Rodrigues Cruz Uma Vida no Teatro Hucitec 2001)




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domingo, 17 de março de 2013

CAPRICHOS DO AMOR E DO ACASO







Trechos de crítica
O Estado de S. Paulo – por Décio de Almeida Prado – 15/11/1964
Representar Marivaux em português – não cremos que a ideia tenha alguma vez ocorrido a qualquer de nossas companhias amadoras ou mesmo profissionais. Marivaux com sua fina e sutil dialética do amor, com seus engenhosos “distinguo” sentimentais, liga-se de tal modo ao século XVIII francês que não o imaginamos em outra língua. O Teatro Popular do Sesi ousou fazer a experiência – e não nos desiludiu. Não diremos que se trata de uma revelação: nem a cenografia de Clovis Garcia nem a direção de Osmar Rodrigues Cruz desejam renovar, oferecer uma versão inesperada e perturbadora de uma fisionomia já definida artisticamente. Mas ambos são homens de teatro competentes e de bom senso, que sabem o que estão fazendo, jamais se permitindo a liberdade de passar a terreno em que não possam pisar com toda a segurança.[...]. A peça inclui assim o público na contradança, ao fazer os personagens assumirem no palco a posição de atores ou de espectadores, introduzindo várias representações menores dentro da grande representação que nos é oferecida. Poderíamos imaginar o mesmo enredo em ritmo de “commedia dell’arte”, com uma troca frenética de máscaras entre os atores, não fosse a gravidade, sobre a aparente despreocupação, com que Marivaux trata estas frágeis questões de amor. Fez bem a Aliança Francesa ao acolher no seu agradabilíssimo teatro da Rua General Jardim este espetáculo que não desmerece a cultura de seu país. E melhor ainda andou o Sesi, continuando a prestigiar o “Teatro Popular” que sob a criteriosa direção de Osmar Rodrigues Cruz, vai se firmando cada dia mais dentro do panorama do teatro paulista. Sesi, ninguém ignora, significa Serviço Social da Indústria. Mas ao oferecer gratuitamente a dezenas de milhares de pessoas espetáculos como Caprichos do Amor e do Acaso, está indo além do muito que o seu nome promete, prestando um inestimável serviço social – e cultural – a toda a cidade de São Paulo.
(in Osmar Rodrigues Cruz Uma Vida no Teatro Hucitec 2001)

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