INSTITUTO
OSMAR RODRIGUES CRUZ
TEATRO NACIONAL POPULAR BRASILEIRO
(TNPB)
Resolvemos, introduzir paralelamente aos programas
de teatro uma modesta pesquisa, em textos breves, sobre nosso Teatro Nacional
Popular Brasileiro tão esquecido e controverso. O repertório do teatro dirigido
por Osmar Rodrigues Cruz sempre foi muito eclético e popular, privilegiando
sempre que possível o teatro nacional. Por isso, desejamos aplicar um tom
coloquial e sem pretensões acadêmicas, nosso alcance é buscar o diálogo,
críticas, opiniões, colaborações e acima de tudo instigar no leitor o gosto da
leitura e pesquisa.
Em homenagem a Martins Pena, que trataremos hoje, vamos publicar somente texto. O primeiro teórico para conhecermos o autor e outro uma peça de sua autoria para ler, copiar e encenar, por que não?
MARTINS PENA (1815 – 1848)
Luiz Carlos Martins Pena nasceu no Rio
de Janeiro em 5 de novembro de 1815. Era pobre e perdeu os pais quando criança.
Cursou a Academia de Belas Artes, trabalhou no Consulado e chegou a ir para a
Europa, onde trabalhou como adido de Primeira Classe em Londres. Foi acometido
de tuberculose pulmonar em Lisboa e faleceu em 7 de dezembro de 1848.
Enquanto exerceu a função de jornalista
teve a oportunidade da observação mais aguçada da sociedade em que vivia. Tece,
então, uma teia onde se mostra “um panorama sócio-político-amoroso do Brasil”,
uma história natural da sociedade brasileira, segundo Cafezeiro e Gadelha.
Martins Pena é, incontestavelmente, o
criador e o mestre do genuíno Teatro Brasileiro, que tem na comédia o seu gênero
mais característico. Extremamente voltado aos hábitos de seu povo, ele tem na
comédia clássica de costumes a sua melhor definição. Comédia de costumes na
tradição de Menandro, Plauto e Terêncio, passando por Gil Vicente e Antonio
José.
Sua habilidade está “nas situações em
que coloca os personagens”, segundo Silvio Romero, produz a reflexão no
espectador, desfaz ilusões por meio de seu realismo verdadeiro e por vezes
cruel. A maledicência, característica do povo brasileiro, é tomada como
pessimismo, corrompido e impertinente. Consciente, porém impotente na mudança
da realidade que o cerca. Ele “simboliza o ridículo popular contra a chata
burguesia (herança portuguesa) dos tempos da Regência e do Segundo Reinado”. É
a documentação viva dos primeiros 50 anos do século XIX no Brasil. Observador
instintivo, sem tendências ou propagandas, jamais moralista somente pede “mais
calma e mais confiança, é bom adiar as paixões e dar entrada a imparcialidade.”
Nas palavras de Silvio Romero: ...”A
história é um montão de vícios, a sociedade um covil de hipócritas. É a
maledicência incondicional, irredutível, ossificada, ação reflexa da depravação
social. Quando esse vício se generaliza num povo, quando os dele atacados
constituem legião, a nação pode ter a certeza que os fortes e nobres incentivos
lhe irão minguando pouco a pouco, e ela terá que marcar passo, esterilizada
pela fatal moléstia. É o caso do Brasil.”
“O despudor da chacota tem nivelado
tudo numa só podridão indistinta. Falamos tão mal de tudo que é nosso, com tal
insistência e tal descaro, que já se não fazem mais seleções; vamos perdendo a
noção das nossas melhores qualidades, e o desânimo tem sido o resultado da
crença, da fé em nossa irremediável condenação, espalhada por esse prurido de
maldizer. Daí a invasão da inércia nas almas boas e o redobramento da
indignidade nas índoles más.”
OBRAS:
O Juiz de Paz da Roça
A Família e a Festa da Roça
O Judas em Sábado de Aleluia
Os Irmãos das Almas
Os Dois ou o Inglês Maquinista
O Diletante
Os Namorados ou a Noite de São João
Os Três Médicos
O Cigano
O Noviço
Witiza ou Nero de Espanha
Casadas Solteiras
O Caixeiro da Taverna
Quem Casa quer Casa
Os Meirinhos
Os Ciúmes de um Pedestre
As Desgraças de uma Criança
O Terrível Capitão da Mata
O Usurário
TEATRO
DE MARTINS PENA – COMÉDIAS – EDIÇÃO MEC – 1956
Comédia
em 1 ato
PERSONAGENS:
ABEL, velho
RITA, sua filha
PACÍFICO, soldado de
cavalaria
MANUEL IGREJA, sacristão da Capela
MADALENA, ama
Soldados
A cena
passa-se no Rio de Janeiro, no ano de 1846.
ATO
ÚNICO
Sala:
portas laterais e no fundo. Junto da porta da direita um berço, e além uma
marquesa. Mesa e cadeiras. É noite. Haverá sobre a mesa uma moringa, um copo e
uma lamparina de porcelana acesa.
CENA I
(Madalena, sentada junto ao berço, o embala)
MADALENA (cantando)
Menino bonito
Não dorme na cama,
Dorme no
regaço
Da
Senhora Santana.
A
Senhora lavava,
São José
estendia,
Chorava o menino
Do frio
que tinha.
Já dorme, graças a Deus! Triste vida é esta minha! Criar
isto... Se ao menos fosse meu! Coitadinho, esse já lá está no céu, e a pobreza
e necessidade aqui me têm presa. Que remédio? Criar filho alheio, para ao
depois tomar-lhe amor e viver separado. Às vezes nem reconhecimento... Que
vida! Quando todos dormem, estou eu acordada, mudando-lhe fraldinhas e
cueiros... Agradável e aromática ocupação! Ai, que acordou! Dorme, dorme... que
pertinho estou... (canta) Senhora
Santana...Dorme, dorme... (embala)
Ah, não quer dormir? Pois espera. (levanta-o
pelo bracinho e dá-lhe palmadas) Agora dorme. (a criança chora) Que goelinha de sapo! Anda, chora para aí. (canta) Senhora Santana... E então, não
dormiu? Santo remédio para crianças são as palmadas! A estas horas já muitos
têm dormido o primeiro sono e vestem-se para a missa do galo; só eu... Ah, quem
me dera poder ir também! É perder a idéia daí, que lhe acho muitos impossíveis.
Cá o velho – o velho! – (ri-se) e a
senhora irão, e ainda dormem; e eu nem durmo e nem vou. Mas ficarei, e ficando,
muito bem sei o que hei de fazer... O meu Pacífico não se esquecerá de mim. O
que querem? Divertem-se, divirto-me também! Cada um como pode. (batem à porta) Batem ! (levanta-se) Quem será? (chegando-se para a porta do fundo) Quem
é?
CENA II
(aparece na porta do fundo Manuel Igreja,
vestido de sacristão da Capela Imperial)
MANUEL (à
porta) Sou eu. Dá licença?
MADALENA Ah, é o Sr. Manuel Igreja. (abre) Entre.
MANUEL Boa noite, Sra. Madalena.
MADALENA O senhor a estas horas por cá e assim
vestido?
MANUEL Prometi ao Sr. Abel vir acordá-lo
para que não perdesse a missa.
MADALENA Ele ainda dorme. O senhor anda muito
obsequioso...
MANUEL Entre amigos...
MADALENA Só amigo? Eu cá o entendo... Não me
logra; faço que não vejo, mas vejo muito.
MANUEL Ah, então o que tem visto?
MADALENA Quer saber?
MANUEL Quero sim.
MADALENA Namorico, namoro e, quem sabe, casamento
por fim? Que diz, acertei?
MANUEL Senhora
Madalena, já que adivinhou o meu segredo, quer agora lucrar com esta
descoberta?
MADALENA Lucrar? Sim!
MANUEL Entregue
esta carta a D. Rita.
MADALENA Oh, devagar! Quem julga o senhor que eu sou?
MANUEL Quem
julgo? Julgo ser a feliz ama daquela inocente criancinha. Oh, Sra. Madalena, o
que não daria eu para amamentar aquela criança e viver sempre junto de sua
encantadora mãe!
MADALENA Oh, e que não daria eu também para ser sacristão, escorropichar
galhetas, ganhar vela de cera e viver no meio de luzes e incenso, como os
anjos!
MANUEL Como
os anjos! Oh, é verdade, eu vivia como um anjo, mas esse tempo já lá se vai...
Acender velas, e apagar velas; ajudar missas e beber o vinho das galhetas;
encomendar defuntos e enterrar defuntos... Com que prazer não entoava eu junto
com os padres a encomendação para sua alma! (cantando) Leva o defunto para terra, venha a pataca mais a vela...
Os defuntos é que davam que comer, ai, ai! Eram minhas doces ocupações! Feliz
tempo! Quantos defuntos não levei eu à cova com sorriso nos lábios! Mas
agora!...
MADALENA Oh, está com cara de enterro!
MANUEL Pode
ser, que há dois anos que sofro. Bem pudera estar morto e enterrado, mas a
esperança, doce esperança... Sra. Madalena, quero-lhe contar como entrou-me no
peito este amor, que me traz engasgado. Há dois anos...
MADALENA Pois já há dois anos? É antigo!
MANUEL Há
dois anos, sim. Era eu então sacristão da Candelária. Uma tarde, eu, meu
companheiro e o vigário esperávamos por uns noivos para celebrarmos o seu
casamento. Chegaram, enfim, em uma carruagem do major, puxada a quatro. Vinham
guapos, e a noiva... Ah, Sra. Madalena, que moça, que peixão, que demônio
bonito! Assim que a vi o coração subiu-me até as goelas e fiquei como sufocado.
Nunca tal tinha sentido! Subiram os noivos para o altar, principiou-se a cerimônia,
e eu, com a tocha na mão, não podia despregar os olhos da dita.
Perturbaram-se-me as idéias, assaltou-me o frenético desejo de dar uma tochada
na cara do noivo, outra no vigário e fugir com a moça.
MADALENA Que amor tão repentino, que frenesi!
MANUEL Ah,
Sra. Madalena, nunca, junto do altar, fiquei mais levado do diabo!
MADALENA Foi uma tentação...
MANUEL Assim
o creio. Porém fiz um esforço e contive-me. Continuou a cerimônia, sem que o
vigário soubesse do que tinha escapado... Mas na ocasião em que o noivo disse:
“Eu te recebo a vós por legítima mulher”, oh! fiquei cego, alucinado! Inclinei
a tocha que tinha na mão e derramei uma torrente de cera quente sobre a sua
cabeça. Ele deu um grito horroroso e levantou-se. O vigário passou-me uma
reprimenda, e ela, ela que a princípio se espantara, sorriu-se, vendo o noivo
com ambas as mãos na cabeça, arrancando punhados de cera e cabelo...
MADALENA E ela sorriu-se?
MANUEL Sorriu-se,
sim. Com um sorriso de anjo!
MADALENA Ou de mulher que vê o marido esfolado... Já dava esperanças.
MANUEL Não
sei se ela dava esperanças, mas posso assegurar-lhe que eu me dava aos diabos.
MADALENA E como acabou-se o casamento?
MANUEL Como
acabam todos: receberam as bênçãos, meteram-se na carruagem e foram-se. E eu
fiquei com cara de tolo, de apaixonado...
MADALENA É o mesmo.
MANUEL E
desde esse dia achei-me outro. Não dei mais uma só cabeçada, não fiz a menor
molecagem na rua, como era meu costume e de alguns meus companheiros; fazia
tudo às avessas: atirava com tocheiras e velas no chão, quebrava galhetas e
banqueta... Se ajudava a missa e dizia o vigário: Per omnia secula seculorum,
eu respondia: Et cum spiritu tuo, e se dizia: Dominus vobiscum, eu respondia:
Amen. Enfim, o vigário, não podendo mais aturar-me, pôs-me no olho da rua, e
eu, para não cortar uma carreira tão brilhante, fui ser sacristão do Carmo.
MADALENA Ia em progresso...
MANUEL Mas
pensa a senhora que eu esquecia-me da tal noiva? Qual! Cada vez ia a pior.
Quando dormia, só com duas coisas sonhava: com ela e com o vinho branco das
galhetas.
MADALENA Ah, ah, ah!
MANUEL E
nesses tormentos de saudades passaram-se quatorze meses. Uma tarde assistia eu
a um enterro e rezava com os padres, como de costume, sem saber o quê. Por
simples curiosidade, levanto-me na ponta dos pés e olho para o defunto que
estava sobre a essa... E vejo... Oh!
MADALENA O que viu?
MANUEL O
noivo, o noivo, que estava morto, defunto! E fiz logo este simples raciocínio:
se ele está morto, ela deve estar viúva...
MADALENA Muito bem raciocinado!
MANUEL Pulei
de contente, e nesse movimento dei com o turíbulo nas canelas de um padre. Oh,
Sra. Madalena, com que prazer entoei eu o “Requiescat in pace”! Acompanhei seu
corpo à sepultura e recomendei ao coveiro que fechasse quanto antes a
catacumba, e dei-lhe meia pataca.
MADALENA Foi generoso...
MANUEL Daria
mais, se tivesse, mas um sacristão não é um capitalista.
MADALENA Que dúvida!
MANUEL Que
feliz morte!
MADALENA E que fez o Sr. Manuel Igreja, sabendo que ela estava viúva?
MANUEL O
que fiz? Essa é boa! Namorei a viúva a bandeiras despregadas. Abandonei festas,
enterros e missas para passar-lhe pela porta vinte, trinta vezes no dia. No
primeiro mês chorou ela a morte do marido; no segundo, chegou à janela; no
terceiro, reparou que eu passava muitas vezes; no quarto, sorriu-se para mim;
no quinto, recebeu uma cartinha; no sexto, esqueceu-se completamente do
defunto; no sétimo, veio à escada conversar comigo; e no oitavo...
MADALENA Basta! Não quero saber mais.
MANUEL No
oitavo, prometeu que se casaria comigo, mas no entretanto fui despedido do
Carmo pelo desmazelo com que diziam que eu servia.
MADALENA Mas lucrou.
MANUEL Lucrei,
sim. Arranjei-me na Capela Imperial – melhor ordenado e mais bonito vestido.
Isto faz vista e seduz! Não fico sedutor assim?
MADALENA Muito!
MANUEL E
ainda recusará entregar esta carta?
MADALENA Não. Mas antes que eu o consinta, o que me dará o senhor?
MANUEL Dar-lhe-ei
todos os bicos e velas que puder arranjar.
MADALENA Guarde seus bicos.
ABEL (dentro) Madalena, com quem estás tu a
falar?
MADALENA O velho acordou!
MANUEL Tome,
tome a carta, tome. (mete-lhe a carta na
mão) Por quem é!
MADALENA (recebendo-a) Está
bom, entregarei.
ABEL (dentro) Com quem falas, Madalena?
MANUEL Sou
eu, Sr. Abel, é o Manuel Igreja. (para
Madalena) Sra. Madalena, conte com minha generosidade.
MADALENA Estava arranjada... Generosidade de sacristão...
MANUEL Dei
meia pataca para enterrar o marido; dar-lhe-ei, para me casar com a mulher...
MADALENA O quê?
MANUEL Esta
sotaina para fazer um vestido.
MADALENA Guarde-a para cueiros de seus filhos!
CENAIII
(Abel,
vestido de casaca e chapéu, e os ditos)
ABEL Sr.
Igreja...
MANUEL Um
criado. Vinha, como lhe prometi, acordá-lo para missa do galo, mas já vejo que
não era preciso. (Madalena, vendo entrar
Abel, dirige-se para o berço e o embala)
ABEL Muito
agradecido.
MANUEL E
a Sra. D. Rita não vai também à missa?
ABEL Vai
sim; já se está a vestir.
MANUEL Quer
que espere para irmos juntos?
ABEL Oh,
não se incomode iremos sós.
MANUEL Não
é incomodo.
ABEL Nada,
nada, não consinto. Pode-se ir embora... (empurrando-o
com política)
MANUEL Está
bem. Então, até mais ver.
ABEL Um
seu criado. (Manuel sai)
CENA IV
(Abel,
e Madalena junto do berço)
ABEL Ora,
eu já ando meio desconfiado que este Sr. Manuel Igreja tem rabo de palha cá por
casa. Há apenas dois meses que meteu aqui de garra e mata-me com obséquios.
Nada, já desconfio da amizade... Ou é pela menina, e essa não é para seus
beiços, ou é pela Madalena, e a essa ponho eu embargos de terceiro. (para Madalena, com ternura) Madalena?
MADALENA (à parte, embalando o
berço) Maldito velho! (cantando)
Menino bonito
Não dorme na cama,
Dorme no regaço
Da Senhora Santana.
ABEL (chegando-se para ela enquanto canta)
Embalas esse menino com cantigas, assim como me embalas com esperanças. Não me
ouves?
MADALENA Senhor?
ABEL Ah,
fazes que me não ouves? Pois olha, não te iria mal se desses atenção...
MADALENA E o que lucraria eu?
ABEL Tudo.
Minha filha alugou-te para criares o seu filho, porque sempre embirrou com amas
negras, mas aqui te conservarás enquanto eu quiser.
MADALENA Irei alugar-me em outra casa.
ABEL Não
acharás.
MADALENA Aposto que sim.
ABEL E
se achares, perdes a tua fortuna.
MADALENA Por quê?
ABEL Porque
meteu-se em cabeça fazer-te feliz logo que acabares a criação de meu netinho.
MADALENA Sapatos de defuntos...
ABEL (com ternura) Madalena!
MADALENA (fugindo para outro lado
do berço) Senhor, deixe-me!
ABEL (estendendo-se por cima do berço para
segurá-la) Madaleninha!
MADALENA Olhe a senhora, que aí vem.
ABEL Deixá-la
vir! (estende os braços)
CENA V
(entra
Rita vestida de preto)
RITA (entrando) Estou pronta.
MADALENA (para Abel) Não lhe
disse?
ABEL Oh,
diabo! (para disfarçar, principia a fazer
festa à criança que está no berço) Psiu, psiu, negrinho! Olha vovô,
cachorrinho! Psiu, psiu, galantinho! Bi, bi, bi! Ni, ni, ni! (Madalena ri-se, à parte)
RITA (encaminhando-se para o berço) Lulu está
acordado?
ABEL (no mesmo) Olha vovô, molequinho! Olha,
bonito! Bi, bi, bi!
RITA (que está junto do berço) Lulu... Está
dormindo.
ABEL Ah,
és tu? Julguei que estavas lá dentro.
RITA E
meu pai a fazer-lhe festinhas.
ABEL Julguei
que estava acordado.
RITA Qual!
Não vê como dorme? Parece um anjo! (dá um
beijo no filho. Abel, enquanto ela tem a cabeça baixa, faz acionados para
Madalena, como quem está zangado. Madalena ri-se) Madalena, tem muito
cuidado nele, ouviste?
MADALENA Sim senhora.
RITA Vamos,
meu pai.
ABEL Vou
buscar o chapéu. (sai)
RITA (para Madalena) Nós voltamos já. Se o
menino acordar, muda-lhe a camisinha e cueiros, que estão muito molhados. Não
te esqueças.
MADALENA Não senhora. O Sr. Manuel entregou-me...
ABEL (entrando) Vamos filha. E tu, fecha a
porta.
RITA (dando um beijo no filho) Vamos. (para Madalena) Julgo que não é preciso
recomendar-te cuidado.
MADALENA Pode ir descansada.
RITA Pois
bem. (sai com Abel)
CENAVI
(Madalena,
só, e depois Pacífico)
MADALENA E eu não tive tempo de entregar-lhe a carta! Vão-se
divertir... Ah, que se eu também pudesse aqui não ficaria. E o velho a
disfarçar com o pequeno! Pobres crianças! Também, ainda não vi inocentes que
mais velhacadas encubram... Uma criança é a melhor capa de namorados que se
conhece. Ao menos sirvam para alguma coisa! Que aborrecimento ficar só em casa,
quando os mais se divertem... E o meu tratante que hoje todo o dia se não
lembrou de mim? Ah, se ele aqui estivesse, deixava-o tomando conta desta
lesmazinha e ia ver a missa. (dentro
assobiam) Ai, que é ele! Que fortuna! Deus o traz! (chegando à janela) Psiu, psiu, entra! Empurra a porta, que está
cerrada. (saindo da janela) Oh, que
felicidade! O velho e a senhora não voltarão nestas duas horas... Tenho tempo.
CENA VII
(entra
Pacífico de farda)
PACÍFICO (da porta) Posso
entrar?
MADALENA Pode, estou só.
PACÍFICO (entrando) Um
abraço.
MADALENA Não faça bulha, que pode acordá-lo.
PACÍFICO Abraços não fazem bulha. Dá cá.
MADALENA Espera, temos contas que ajustar.
PACÍFICO As contas ajustam-se no fim...
MADALENA Pior.
PACÍFICO O caso não vai de zangar, nem creio que me mandasses dizer
que o velho ia à missa do galo para brigares comigo.
MADALENA Não, era para te dizer que já não estou muito bem nesta casa,
que quero sair dela.
PACÍFICO E por quê?
MADALENA O Sr. Abel persegue-me. Meteu-se-lhe nos cascos que eu...
PACÍFICO (rindo-se) Ah, ah,
ah! Ele, velho baboso...
MADALENA Velho baboso... Fia-te nele!
PACÍFICO Não, mas fio-me em ti.
MADALENA E é o que te vale. Mas deixemos de graças; eu quero sair
daqui.
PACÍFICO Deixa-te disso, Madalena; é preciso ganhar a vida! Que
diabo, vinte mil réis por mês não é marimba! Bem sabes o que nos tem custado
viver. Há um ano que viemos de São Gonçalo...
MADALENA Antes de lá nunca tivesse saído. Vivia tão bem com minha mãe!
Tu é que me perdeste.
PACÍFICO Queixa-te da minha má fortuna. Se não fosse o diabo do
recrutamento, que me deu com ossos na cidade, debaixo desta maldita farda, hoje
podia estar casado contigo.
MADALENA E bem sabes que esse era o teu dever...
PACÍFICO Mas assim não quis o serviço do Estado. Quem recruta não
quer saber se o homem está para casar, ou se deve casar-se. Vai agarrando a
torto e a direito. É uma tirania! Olha, eu cá sou de parecer que não se devia
recrutar não só os homens casados, como os que podem ser casados.
MADALENA Assim não se recrutava ninguém, e não haveria soldados.
PACÍFICO O Estado precisa mais de filhos do que de soldados, e
demais, a lavoura é quem perde com isso.
MADALENA A lavoura! Tu trabalhavas muito pela lavoura...
PACÍFICO Se não trabalhava, deixava a outros trabalhar; e mais, era
porque meu pai não me deixou nem um palmo de terra. Que culpa tenho eu nisso?
MADALENA Tem muita. Vivias como um vadio; todo o santo dia com a
espingardinha no ombro a caçar. Eras mesmo um canela verde, como nos chamam cá
na cidade. Mais dia menos dia não podia escapar da praça. Eu bem te avisei; não
me quiseste ouvir...
PACÍFICO Mas como? Era um canela verde, vadio?
MADALENA Até que filaram-te. Vieste cá para a cidade, juraste bandeira
e eu fugi de São Gonçalo para te acompanhar.
PACÍFICO Fizeste muito bem.
MADALENA Fi-la como a minha cara, para viver aturando uma mãe
impertinente, um velho baboso e aquela pestinha que ali está deitada. Boa vida!
Os mais a divertirem-se, e eu aqui presa.
PACÍFICO Diverte-te também.
MADALENA Sim, hei de deixar aquela lesma só... Ah, se eu pudesse ir à
missa do galo!
PACÍFICO Pois vamos; ele não morrerá por um instante que fique só.
MADALENA Não é possível. Ah, se tu quisesses ficar um instantezinho
tomando sentido nele...
PACÍFICO Eu?
MADALENA Sim, enquanto eu volto.
PACÍFICO Eu, tomando sentido em uma criança?
MADALENA E o que tem isso?
PACÍFICO Feito ama-seca, de espada à cinta!
MADALENA Pacífico, meu amor!
PACÍFICO Nada, é o que me faltava! Um soldado de cavalaria de linha,
um defensor da pátria, feito ama de nenéns! Ah, ah, ah! E se ele chorar, quem
lhe há de dar de mamar?
MADALENA Dá-lhe tu.
PACÍFICO Hem?
MADALENA Escuta, não me interrompas. Dá-lhe tu esta água com açúcar que
está neste copo. Assim... (tomando um
copo que está sobre a mesa) Espreme-lhe este paninho na boca; estás vendo?
PACÍFICO Mas então tu pensas que eu hei de ficar...
MADALENA Penso sim.
PACÍFICO E quem te disse?
MADALENA O amor que me tens.
PACÍFICO Ah, queres-me pegar pelo fraco.
MADALENA Pacífico, meu rico Pacífico, tu não farás um sacrificiozinho
por tua Madalena, que tanto te ama e que por ti tudo deixou? O que te custa
isso? É um instante; só o tempo de eu chegar à igreja, espiar e voltar, sim?
Meu soldado de amor, queres-me ver chorar, ingrato?
PACÍFICO Prometes-me que só espiarás?
MADALENA Sim, só espio e volto.
PACÍFICO Vê lá! Espiar e voltar. Não te demores; quando não, abandono
a sentinela.
MADALENA Voltarei em um pulo.
PACÍFICO Fazes de mim o que queres.
MADALENA (tomando um xale que
está pendurado na cabeceira da marquesa e pondo-o no ombro) Embala-o bem,
se ele chorar, e canta alguma coisa; não custa nada. E adeus, que vou depressa
para voltar cedo. Não te esqueças; água com açúcar.
PACÍFICO Espera, olha... E... Foi-se! (Madalena sai)
CENA VIII
(Pacífico,
só)
PACÍFICO E então? Deixou-me feito ama. E que tal? Vejamos a minha
cria. (chegando-se para o berço)
Dorme que é um regalo! Se dormisse assim sempre, muito bem íamos. Ora, ele é
galantinho! Sempre gostei mais de ver as crianças que dormem; ficam tão
sossegadinhas! Ai, que ele se mexe. Mau, mau! (principia a embalar o berço devagar) Dorme, dorme! Xi, xi, xi! O
demoninho acorda; bole com os braços. (embalando
o berço) Xi, xi, xi! Oh, diabo, abriu os olhos! Embalemos mais forte a ver
se dorme. (embala o berço com força)
Xi, xi, xi! (a criança principia a chorar)
Ah, chora! Estou arranjado; agora é que são elas! (embala com muita força. A criança continua a chorar) Nada! Como
guincha! Ah, Madalena! Diabo, dorme! Diabinho! E então? Cada vez a melhor. (continua a embalar desesperado) Não há
remédio senão cantar; a ver se assim... Mas que diabo cantarei eu? Seja o que
for. (cantando e embalando)
Senhorinha,
vá-se embora,
Meu
bem,
Vá
pra casa direitinho.
Não
faça como fez ontem,
Que
me deixou no caminho.
Parece-me
que não gosta de música... Olhem que goelas. Cala a boca! Qual! (gritando muito) Bico calado! Cada vez
abre mais os foles! Ai, que não me lembrava da água com açúcar. (corre para junto da mesa e toma o copo, mas
ao dirigir-se para o berço, com a pressa que vai, tropeça e deixa cair o copo
no chão) Bravo! Bonito! Fi-la como os meus focinhos! Foi-se a água com o
açúcar, e o diabinho a gritar! Espera, que ainda posso aproveitar alguma coisa.
(assim dizendo, molha o paninho na água
que corre pelo chão) Ainda serve. (chega-se
para o berço) Toma! (dá à criança)
Ah, ainda é pouco... (torna a molhar o
pano no chão) Toma mais. Não se farta; chupa e chora. Arre, que pestinha!
Vejam lá que cara! (arremedando a criança
no chorar) Belo ofício! Vejamos se as palmadas fazem mais efeito; é santo
remédio. (dá palmadas na criança, que
redobra o choro) Foi pior! Nem açúcar, nem palmadas... Que o leve o diabo!
Que lhe darei? (como que procura alguma
coisa pela sala) Muito custa criar! Eu, só na última necessidade... E não
vejo nada! Naquele armário, talvez. (vai
abrir o armário) Ah, garrafas! (tira
uma garrafa e cheira) Vinho! Belo! (bota
a garrafa na boca e bebe) Talvez também goste. (vai para o berço) Assim, abre bem a boca; tome lá. (dá vinho à criança, na garrafa) Oh,
diabo, como ficou vermelho! É pequeno... Mas se morre? Melhor; ainda não ouvi
defunto chorar. (o pequeno chora)
Qual morrer! Dei-lhe mais força para chorar. Leve-me o demo, se sei o que hei
de fazer. (tira uma espora do pé e dá à
criança) Olha, bonito! Tetéia, tetéia! O diabo espetou-se com a roseta! Já
não posso, vou-me embora. Arrebento! Pára aí! Mas Madalena... Ai, que isto
agora faz-me lembrar de uma coisa: o pequeno está estranhando a farda, as
calças e todo este aparelho. Se eu achasse um vestido... (vai para junto da cama de Madalena) Bravo, achei! (tomando um vestido, um xale e touca que está
nos pés da cama, veste-se com eles) Assim pode ser que não estranhe. Tem-me
feito suar! Que bonita ama! Bem me podia alugar; havia de ganhar mais do que me
paga a nação. Agora o xale... Muito bem! Venha o toucado... (põe a touca, e assim vestido, chega-se para
o berço e fala com a criança afinando a voz) Nhonhôzinho, não chore; é
Madalena. Ande cá. (toma a criança nos
braços) Não chore, durma, durma. Quer passear? Vamos passear. (principia a passear, cantando e tendo a
criança nos braços, muito sem jeito)
Menino
diabo,
Tu,
tu, ru, tu, tu;
Não
chore, que eu chamo,
Que
chamo o tutu.
Menino
bonito,
Ao
pé do murundu,
Se
não dorme já,
Eu
chamo o tutu.
Não
dizia que a farda o espantava? Estava acostumado a viver com saias! Parece-me
que vai adormecendo. E eu pensava que não tinha jeito para isto! O caso é que
tudo está no principiar, depois vai mesmo por si. Já fechou os olhos. Ainda
bem, que já estava disposto a tapar-lhe a boca com a rolha da garrafa. Ah,
Madalena, não me metes noutra! Agora vou deitá-lo, mas cuidado... (vai devagar para o berço e aí deita a
criança com cuidado) Ora, anda lá que não foi mal ninada... Possas tu
dormir aí até o dia do Juízo! Oh, mas a Madalena não me mete noutra! Safa,
estou estafado! Enquanto ela não chega, deito-me um pouco. (vai para a cama e deita-se) Ah, o
descanso Deus amou... O diabo é se eu durmo e entra o velho. Vou daqui a toque
de clarim. Mas ela entrará antes. Que demônio de travesseiro tão duro! (vai a voltar o travesseiro e dá com a carta
que Madalena aí escondera) Olé, uma carta! De quem será? (levantando-se) Querem ver que a bicha me
logra... Ah! (encaminha-se para a
lamparina e principia a ler a carta, soletrando) “Minha querida.” (falando) Ah, sua querida! Boa vai ela...
(lendo) “Hoje preciso muito falar
contigo. Quando voltares da missa do galo, em vez de te ires deitar, deixa o
velho dormir, e espera-me. Isto te pede teu querido Manuel Igreja.” (falando) Ah, tu amas ao Manuel Igreja?
Igrejinha te hei de armar eu! Ah, traidora! Ora, fiem-se em mulheres! Esta nem
por ser da roça, quanto mais se fosse da cidade... Tomara eu que o tal Manuel
Igreja por cá apareça, que lhe quero rezar a ladainha e repicar-lhe o sino no
espinhaço. Ah, maroto! Parece-me que ouço passos. Talvez seja ele... Ou ele ou
ela, quero ensiná-los! (pega na lamparina
e a põe debaixo da mesa)
MANUEL (dentro) Madalena?
PACÍFICO (à parte) É ele!
Entra, entra que não sabes o que te espera... (vai a sentar junto do berço)
CENA IX
(Manuel
Igreja e Pacífico)
MANUEL (aparecendo na porta do fundo) Madalena,
eles já saíram? Posso entrar?
PACÍFICO (disfarçando a voz)
Pode.
MANUEL (entrando e encaminhando-se para Madalena)
Muito obrigado te estou eu. Verás que não serei ingrato; o meu amor servirá de
fiança do que te prometo. O velho não pode tardar, não é assim? Assim que ele
entrar, eu esconder-me-ei debaixo da tua cama, e depois...
PACÍFICO (que tem ouvido Manuel
com a cabeça baixa, levanta-se repentinamente) Ah!
MANUEL (recuando) Que tens, Madalena? (Pacífico arregaça o vestido) Levanta o
vestido!... (Pacífico puxa pela espada)
Uma espada! (Pacífico caminhando para
Manuel. Manuel recuando) Madalena... (Pacífico
segurando-lhe pelo braço) Não é Madalena?
PACÍFICO Não, é o diabo que te parta!
MANUEL (aterrorizado) Ah!
PACÍFICO Tratante, sacristão de uma figa! É, é sacristão, o patife...
Ah, meu menino, pensavas que assim me havias surrupiar...
MANUEL Mas,
senhor, eu... Mas quem é o senhor?
PACÍFICO Cinqüenta pranchadas para principiar. (dá-lhe uma pranchada)
MANUEL (gritando) Ai, ai!
PACÍFICO Psiu, grita baixo, não me acorde a criança! Grita devagar...
(dá-lhe)
MANUEL (gritando) Ai, ai!
PACÍFICO O pior é berrar. Não me acorde a cria!
MANUEL Senhor,
se é por ordem do Sr. Abel...
PACÍFICO Qual Abel, nem Caim! Isto cá é por minha conta e de
Madalena.
MANUEL Da
Madalena!
PACÍFICO Da Madalena sim, sô sacrista das dúzias, a quem tu queres
seduzir. Mas primeiro há de levar-me o diabo, ou eu não jurei bandeira!
MANUEL Mas,
senhor, aqui há engano!
PACÍFICO Enganar-me queres tu, só escorrupicha-galhetas!
MANUEL Eu
não quero seduzir a senhora Madalena.
PACÍFICO Não? E esta carta?
MANUEL (examinando a carta) Esta carta não era
para ela.
PACÍFICO Então para quem era?
MANUEL Era
para...
PACÍFICO Fale-me depressa, sô papa-bicos.
MANUEL Era...
(à parte) Mas quem será este sujeito?
Talvez amante de Madalena.
PACÍFICO Ah, estudas o que hás de dizer? Pois vai-te lembrando... (dá-lhe)
MANUEL (muito depressa) Era para D. Rita, a
filha do velho.
PACÍFICO (largando-o) Ah,
era para D. Rita?
MANUEL Tinha
pedido à senhora Madalena que lha entregasse.
PACÍFICO Ah, a Madalena tem mais essa prenda? E a senhora dona Rita
lhe corresponde?
MANUEL (com fatuidade) Sim senhor.
PACÍFICO Ora, bem se diz que as mulheres escolhem o pior.
MANUEL Nem
todas. A Sra. Madalena, por exemplo pelo que me parece, tem bom gosto.
PACÍFICO Achas?
MANUEL Oh,
pois não!
PACÍFICO Dá cá um abraço. (abraça-o)
Muito bem; vieste pela Rita, e eu pela Madalena. Muito bem; temo-nos entendido,
isto é, se o que disseste é verdade. Quando não, dou-me por desentendido e leva
tudo a degola. Elas não tardam...
CENA X
ABEL (dentro) Ó Madalena, alumia esta escada.
PACÍFICO Aí vem o velho! Com os diabos!
MANUEL Se
aqui nos encontra, estamos perdidos!
PACÍFICO Toca a esconder!
MANUEL Eu
vou para debaixo da cama.
PACÍFICO E eu para cima. (fazem
o que dizem. Manuel esconde-se debaixo da cama, e Pacífico, deitando-se,
cobre-se com os lençóis, tapando a cara, e finge que dorme)
ABEL (dentro) Madalena? (aparecendo à porta, seguido de Rita) Querem ver que saiu?
RITA (entrando) Está dormindo.
ABEL E
deixou a porta aberta. Forte estouvada!
RITA Madalena?
ABEL Não
a acordes, que passa muitas noites em claro com teu filho.
RITA Para
isso ganha meu dinheiro. Deixe mandar ver se o menino está molhado. (chegando-se para a cama) Madalena? (sacudindo-a) Madalena? Que sono!
MANUEL (debaixo da cama, puxa-lhe pelo vestido)
Ritinha?
RITA (espantando-se) Ah!
MANUEL Sou
eu... (esconde-se)
ABEL O
que é?
RITA Nada,
não senhor. Que imprudente!
ABEL Por
que gritaste?
RITA Foi
uma pontada que me deu aqui do lado.
ABEL É
da umidade que apanhaste. As ruas estão incapazes, cheias de lama. Não só não
nos deixaram ir à missa, como te fizeram doente. Vai-te despir e deitar, e
afumenta-se...
RITA Julgo
que será melhor... Como o pequeno está quieto, deixemos a Madalena a dormir.
Boa noite, meu pai. (toma-lhe a benção)
ABEL Até
amanhã.
RITA E
meu pai não se vai deitar?
ABEL Vou,
sim.
RITA Boa
noite.
ABEL Boa
noite, filha. (vai fechar a porta do
fundo)
RITA (à parte) Eu voltarei... (entra no seu quarto, à direita)
CENA XI
(Abel,
Manuel e Pacífico, escondidos)
ABEL (espiando) Estou só com ela. A Rita vai
se deitar, porém o mais prudente é voltar quando ela estiver dormindo. Não
quisera que minha filha, por coisa nenhuma deste mundo, suspeitasse de meu amor
por esta feiticeira ama. (chegando-se
para a cama de Madalena) Como dorme! Que tranqüilidade! Como respira
docemente! Parece que seu hálito embalsama este aposento! Ah, que se não fosse
minha filha, casava-me contigo... (chamando-a
devagar) Madalena? Madaleninha? (sacudindo)
Meu anjinho... (Pacífico faz que
espreguiça-se e dá com a mão na cara de Abel) Ai, ladrãozinho, que me
bateste! Mas pancadas de amor não matam, não...
RITA (dentro) Joana, ó Joana?
ABEL A
Rita está chamando pela mucama, para se despir. O mais prudente é eu voltar
logo; porém primeiro hei de dar-lhe um beijinho nesta fronte tão cândida e tão
pura. (chega-se para Pacífico e dá-lhe um
beijo na testa) Como é doce! Até já... (sai
pela esquerda, atravessando a cena, esfregando as mãos de contente)
CENA XII
(Pacífico
e Manuel)
PACÍFICO O diabo do velho babou-me a testa!
MANUEL (espiando, debaixo da cama) E que lhe
parece o velho?
PACÍFICO Fiem-se em velhos! Se eu fosse a Madalena, estava arrumado.
MANUEL (rindo-se) Ah, ah, ah!
PACÍFICO Você ri-se? O caso estava ficando sério. E ainda não sei o
que será. Ele prometeu voltar. Que diabo de velhinho! Mas vê lá, se a tua vier,
nem uma palavra sobre mim; quando não, mato-te.
MANUEL Cale-se,
que aí vem gente! (esconde-se)
PACÍFICO (deitando-se e
cobrindo-se) Se é o velho outra vez e bole comigo, enfio-lhe a espada pela
barriga antes que ele se adiante muito.
CENA XIII
(entra
Rita com cautela)
RITA (entrando) É preciso falar-lhe! Assim se
arrisca por mim! Como me ama! (chegando-se
para junto da cama) Madalena dorme. (chamando
com cautela) Sr. Manuel?
MANUEL (aparecendo) Ritinha!
RITA Saia
para fora, mas devagar; veja, não acorde Madalena.
MANUEL (saindo de baixo da cama) Ela não
acordará.
RITA Que
imprudência, assim esconder-se! Se meu pai o tivesse visto... Vá-se embora.
MANUEL A
tanto não me arrisquei para me ir assim.
PACÍFICO (diz, como à parte)
O que quererá o sacrista fazer?
RITA E
que pretende você?
MANUEL Pouca
coisa: saber se te casas ou não comigo.
RITA Já
te disse muitas vezes o que punha obstáculo à nossa união. Casei-me contra a
vontade de meu pai e fui desgraçada. Dois anos estive casada e dois anos vivi
martirizada, porque meu marido era um demônio de gênio. Deus o levou para meu
sossego.
MANUEL E
foi muito bem levado.
RITA Enquanto
estive casada, meu pai abandonou-me, para castigar-me assim de minha
desobediência; mas viúva, chamou-me ele para junto de si com meu filho.
Esqueceu-se de minha ingratidão e acolheu-me com braços paternais, e eu, para
reconhecer tanto amor, jurei não me casar de novo sem o seu consentimento.
MANUEL Isso
não são coisas que se jurem, porque nesses negócios, quem jura, perjura.
RITA Nem
todos. Eu cumprirei meu juramento. Hei de me casar, mas com a sua aprovação.
MANUEL Assim,
já vejo que não arranjo nada. Teu pai não consentirá nunca que te cases comigo;
não por mim, mas enfim, pelo meu ofício – um sacristão...
RITA Pois
deixa de ser sacristão.
MANUEL E
o que hei de ser?
RITA Empregado
público.
MANUEL Lembras
muito bem, e não vejo a razão porque não hei de alcançar um bom emprego. Olha,
eu conheço um sapateiro, dois alfaiates, dois marceneiros, um tanoeiro, um
sirgueiro e um ourives que deixaram, todos, os ofícios, e todos estão muito bem
arranjados! E eu lhes dou razão, porque enfim é melhor trabalhar das dez horas
até as duas, e londrear toda a tarde, e namorar, do que suar todo o dia no
ofício.
RITA E
demais, fizeram muito bem. Quem tem padrinho...
MANUEL ...Não
morre mouro. Assim é, e além disso, os ofícios cá na nossa terra já nada dão; a
concorrência de estrangeiros é grande. Só os empregos públicos é que são para
os filhos do país, e isso mesmo... Enfim, está dito, vou pedir um emprego, e
com empenho se faz tudo entre nós.
RITA E
então não duvido que meu pai dê o seu consentimento. No entanto, se daqui até
lá alguma circunstância nos favorecer...
MANUEL Nós
aproveitaremos, e... (a criança chora)
RITA Lulu
está chorando. Espere, enquanto eu chamo Madalena para lhe dar de mamar.
MANUEL Vai
chamá-la.
RITA Sim.
Não ouve o menino que chora. Meu pai pode acordar. (caminhando para a cama) Madalena, Madalena? Vem dar de mamar ao
menino. Como dorme!
MANUEL Aí
vem o velho!
RITA Meu
pai?
MANUEL Sim.
RITA Apaga
a lamparina! (Manuel apaga a lamparina.
Escuro)
PACÍFICO (à parte) Já
escapei de duas...
RITA (à parte, para Manuel) Saia, se puder...
E silêncio! (Rita encaminhando-se para a
direita e, parando, escuta. Manuel dirige-se para a porta do fundo, que acha
fechada. O menino continua a chorar)
CENA XIV
(Abel
e os ditos)
ABEL (aparecendo à porta da esquerda)
Madalena? Apagou-se a lamparina e o menino chora. A Rita pode acordar. (passa por entre Rita, que está à direita, e
Manuel, que está à esquerda, e vai ao berço e toma a criança nos braços)
RITA (à parte) É meu pai! (sai pelo seu quarto e fecha a porta)
MANUEL (à parte, ao mesmo tempo) É o velho!
ABEL (com o menino nos braços) Não chores. (indo para Madalena) Madalena, acorda, dá
de mamar ao pequeno. Levanta-te, ladrãozinho, vem dar de mamar.
PACÍFICO (à parte) Esta
agora é melhor...
ABEL Levanta-te,
toma o pequeno.
PACÍFICO (sentando-se na cama e
espreguiçando-se) Hum!
ABEL Pega,
acalenta-o, enquanto eu vou buscar luz.
PACÍFICO (à parte) Luz
agora seria bonito! Melhor é dar-lhe de mamar no escuro... (toma o pequeno e levanta-se)
ABEL (seguindo-o no escuro) Espera, olha que
te podes esbarrar com o pequeno.
PACÍFICO (à parte) Não é
graça; estou com medo do velho no escuro.
ABEL (procurando Pacífico no escuro) Madalena,
vidinha, escuta...
MANUEL (à parte) Ah, é esse o caso!
RITA (à parte) Meu pai namora a ama do meu
filho, ah!
PACÍFICO (à parte) Eu largo
o pequeno no chão, e safo-me! (vai
abaixar-se para deitar a criança)
ABEL (nessa ocasião, encontra-se com ele) Ah,
por que foges de mim, feiticeira? Em casa todos dormem; nós estamos no escuro e
ninguém nos vê.
PACÍFICO (à parte) Sim, mas
alguém nos ouve.
ABEL Olha,
eu posso fazer muito por ti... posso fazer-te feliz, muito feliz; mas dá-me um
abraço! (quer dar-lhe um abraço)
PACÍFICO (empurra-o)
Devagar! (encaminha-se para o lado onde
está Manuel)
ABEL Ingrata!
RITA (à parte) Quem tal diria!
ABEL (procurando) Hei de encontrar-te!
PACÍFICO (que se encontra com
Manuel) Quem é?
MANUEL Sou
eu.
PACÍFICO É o sacrista? Toma o pequeno. (dá-lhe o pequeno)
MANUEL Mas...
PACÍFICO Caluda!
ABEL (procurando) Madaleninha, minha vida! (Pacífico dirige-se para o fundo)
MANUEL (à parte, com o pequeno nos braços) No
que dará isto?
ABEL (encontrando-se com Manuel, o segura pela
sotaina) Ah, pilhei-te! Cruel, por que me foges?
MANUEL (à parte e forcejando para livrar-se de Abel)
E então? Agora é comigo...
ABEL Não
vês que estou mirrado por ti?
MANUEL (à parte) Eu dou-lhe com o neto pelas
ventas!
ABEL Só
um beijo, já que não queres ouvir, e vou-me embora. (quer dar-lhe um beijo. Manuel suspende o menino nos braços e lho
apresenta. Abel dá um beijo no pequeno, supondo ser em Madalena) Como é
gostoso! Outro, outro! (vai dar outro
beijo no pequeno, e querendo ao mesmo tempo abraçar ao que ele supunha
Madalena, fica com o pequeno nas mãos)
MANUEL (à parte e caminhando para a esquerda)
Beija à tua vontade.
ABEL O
que é isto? Ah, marota, assim me enganas! E dei um beijo... O que me vale é ser
de criança... Deixaste-me com o pequeno; mas espera, que mesmo no escuro te
acharei. Ai, ai, que esta pestinha molhou-me todo! Faltava-me esta! (Manuel, Rita, Pacífico, ouvindo o velho
assim falar, riem-se) Ah, você ri-se? Veremos quem se há de rir por fim.
Mas é bem feito que tal me aconteça, porque bem diz o ditado: Quem dorme com
criança, amanhece... Não preciso dizer como, porque cá o sinto. Madalena, toma
tua cria, senão largo-o no chão, antes que faça pior.
RITA (à parte) Meu filho no chão! (dirige-se a encontrar-se com Abel)
ABEL Então?
(encontrando-se com Rita) Ah,
brejeirinha! (Rita toma o filho dos
braços de Abel e aparta-se com ele) Ah, assim mangas comigo? Vou buscar uma
vela. (aqui batem à porta com cautela)
Batem! (escuta, e tornam a bater) Não
há dúvida!
RITA (à parte) Quem será?
MANUEL (à parte) Mau...
PACÍFICO (à parte) É a
Madalena! (batem)
ABEL Quem
é?
MADALENA (dentro, disfarçando a
voz) Sou eu.
ABEL Respondem!
Quem será? Vou buscar a luz. (sai pelo
seu quarto)
CENA XV
(Rita,
Manuel e Pacífico no escuro)
PACÍFICO Onde diabo me hei de eu esconder?
MANUEL Que
farei?
RITA Madalena?
Madalena?
PACÍFICO (à parte) Temos a
outro com Madalenas...
MANUEL Ó
Ritinha? Ritinha?
RITA (encontrando-se com Manuel) Silêncio, que
meu pai aí vem. Toma o pequeno, entregue-o a Madalena. Que o deite no berço, e
você, esconda-se neste quarto à direita e adeus. (entrega-lhe o pequeno e sai pelo seu quarto)
MANUEL Ó
Ritinha, espera! Foi-se, e deixou-me com a lesma nos braços! Madalena? Qual
Madalena! Camarada? Ó camarada?
PACÍFICO Que é lá?
MANUEL Onde
estás? (encontrando-se com ele) Ah,
toma!
PACÍFICO O quê? (Manuel
deixa-lhe o pequeno nos braços e afasta-se para a esquerda)
MANUEL Que
lá se avenha.
PACÍFICO Ah, tratante, pensas que eu sou ama de leite?
MANUEL Arranja-te
como puderes, que aí vem o velho. (entra
no primeiro quarto à direita)
PACÍFICO (com o pequeno nos
braços) Eu largo a carga (deita o
pequeno no chão) e safo-me. Mas para onde? Aquele quarto... (dirige-se para o quarto aonde entrou Manuel)
CENA XVI
(entra
Abel com uma vela)
ABEL (vendo ainda Pacífico correr para o quarto)
Madalena? Meu netinho no chão! A desavergonhada... (tomando nos braços o pequeno, que está no chão) Só para fugir-me...
(chegando-se para a porta por onde saiu
Pacífico, a qual está fechada por dentro) Deixa estar, Madalena, que me hás
de pagar! Amanhã boto-te pela porta afora. (batem)
Já vou! Verás se assim se despreza o meu amor... E se assim se trata do meu
neto. (vai para a porta do fundo)
Quem bate?
MADALENA (dentro) Sou eu.
ABEL Eu
quem?
MADALENA (dentro) Abra!
ABEL E
esta? A voz parece-me de mulher... Serão ladrões? Qual, não se atreveriam a
andar pela rua às horas da missa do galo. Vejamos quem é. (abre a porta)
CENA XVII
(Madalena
e Abel)
MADALENA (entrando e vendo Abel,
fica surpreendida) Ah! (Abel, vendo
entrar Madalena, de susto deixa cair o pequeno no chão e fica sem poder falar,
ora olhando para Madalena, ora para a porta do quarto onde entrou Pacífico.
Madalena apanhando o pequeno no chão, que chora) Meu filhinho! (embala-o nos braços) Estou perdida!
Senhor, perdoai-me, se deixei o menino por alguns instantes. Não pude resistir;
quis também ver a missa do galo. Juro que será a última vez este ano... Mas por
que este espanto? Que quer isto dizer? Aponta para o quarto... Senhor!
ABEL (gaguejando de medo) Madalena, tu não
entraste por ali? (apontando para o
quarto)
MADALENA Não senhor, entrei por ali. (apontando para o fundo)
ABEL Então
foi minha filha. Que vergonha, que vergonha para um pai! Que vexame! Que dirá
de mim a Ritinha? Quero-lhe pedir perdão. Dá cá este menino, que será o meu
penhor. (tira o pequeno dos braços de
Madalena arrebatadamente)
MADALENA Não mate o menino!
ABEL (dirige com o pequeno nos braços para junto
da porta por onde saiu Pacífico, e aí chegando, ajoelha-se com a cara voltada
para a porta) Filha, às vezes um pai deve humilhar-se diante de seus
filhos, quando pratica uma ação que o rebaixa aos olhos daqueles a quem deve
bons exemplos. Eis-me humilhado diante de ti. A natureza é fraca... Tomei-te
por Madalena e disse-te coisas que me fazem agora corar de vergonha. Abre esta
porta e vem abraçar teu pai em sinal de esquecimento. Aqui está teu filho, meu
netinho, que me deveria fazer lembrar que estou velho para não praticar ações
indecorosas. Perdoa-me, por amor dele! Abre, abre esta porta! (enquanto Abel está de joelhos junto da porta
e fala, Rita entra pela porta de seu quarto, e depois de falar com Madalena em
segredo, dirige-se para junto do pai)
RITA Meu
pai! (Abel volta a cabeça e, vendo Rita
atrás de si, dá um grito, levanta-se e deixa cair o pequeno no chão. Rita
apanhando o pequeno) Meu filho!
ABEL Rita!
Rita por trás de mim, quando eu esperava por diante!
RITA (sem dar atenção ao pai e beijando o filho)
Meu amor, meu anjinho! Coitadinho!
ABEL (pegando no braço da filha com violência)
Rita!
RITA Não
machuque o meu filho!
ABEL Tu
não saíste por aqui? (apontando para a
porta)
RITA Não
senhor, saí por ali.
ABEL Ah,
todos saíram por todas as partes, menos por aqui, e no entanto eu vi... Já sei,
é um ladrão, é um ladrão que se introduziu em minha casa vestido de mulher!
RITA Um
ladrão!
MADALENA (ao mesmo tempo) Um
ladrão!
ABEL Sim,
um ladrão, que deu de mamar ao pequeno para me enganar! Mas hei de vingar-me! (caminha nas pontinhas dos pés para junto da
porta e, aí chegando, dá com rapidez uma volta na chave)
RITA (à parte, enquanto o pai dirige-se para a
porta) Pobre Manuel!
MADALENA (no mesmo) O que
será do meu Pacífico?
ABEL (dando volta na chave) Está preso! Ah,
agora verás! Rita, Madalena, esperem aqui um instantinho, que eu já volto, e
tenham olho na porta! Ele não é capaz de arrombá-la, nem o quarto tem saída.
Vou chamar a primeira ronda que encontrar. Oh, não me há de escapar!
RITA Meu
pai, ouça...
MADALENA (à parte, para Rita)
Deixá-lo ir.
ABEL Eu
volto em um pulo. Olho na porta! (sai
correndo)
CENA XVIII
(Rita
e Madalena)
MADALENA Minha ama, perdoe-me!
RITA Fizeste
mal em deixá-lo entrar, mas agora é preciso salvá-lo.
MADALENA Oh, muito obrigado, minha boa senhora. Abramos a porta. Pobre
Pacífico!
RITA (à parte) Pobre Manuel! (vão ambas abrir a porta, e saem por ela
Manuel e Pacífico já sem vestido)
RITA e
MADALENA (espantando-se) Ah,
são dois!
PACÍFICO Madalena!
MANUEL (ao mesmo tempo) Ritinha!
RITA O
que é isto, Madalena?
MADALENA Senhora, um é meu...
PACÍFICO Sou eu. (chegando-se
para Madalena)
MANUEL (para Rita) E o outro é teu. (chegando-se para Rita)
RITA Mas...
MANUEL Não
temos tempo para explicações.
PACÍFICO Demos graças a Deus, se o tivermos para nos pormos ao
fresco.
MADALENA Eles tem razão, senhora. Seu pai não tarda com soldados, e se
os pilha, estamos todos perdidos.
PACÍFICO A Madalena tem razão. Toca a debandada! (toma a barretina e espada, que estão debaixo
da cama e dirige-se para a porta do fundo)
MANUEL (para Rita, enquanto Pacífico tira a
barretina de baixo da cama) Ritinha, pede a Deus que morram de hoje para
amanhã quatro oficiais de secretaria, que eu me encaixarei em um dos lugares...
E adeus! (dirige-se para a porta do
fundo; aí chega junto com Pacífico e, querendo empurrar a porta, a encontram
fechada)
AMBOS Está
fechada!
RITA Fechada?
Como há de ser?
MANUEL Isso
pergunto eu.
PACÍFICO E eu também. O que havemos fazer?
RITA Não
sei, não sei, meu Deus! E meu pai não tarda!
PACÍFICO (puxando da espada)
Não há remédio senão cutilar o velho.
MADALENA Pacífico!
MANUEL E
eu, o que posso fazer é encomendá-lo e enterrá-lo...
RITA Senhor!
MADALENA Escutem. Não se aflija, minha senhora. (para os dois) Entrem os senhores ambos por esta porta, (aponta para o quarto de Rita) passem o
primeiro e o segundo quarto, tomem por um corredor que está à direita, no fim
há uma janela que deita para rua; abram-na e saltem por ela.
PACÍFICO És uma pérola!
MANUEL (para Rita) Adeus, até sempre!
PACÍFICO Anda, sacrista! (saem
ambos correndo pela direita)
CENA XIX
(Rita
e Madalena)
RITA Madalena,
e nós? Meu pai não tarda, e não achando ninguém no quarto...
MADALENA Tenho cá meu plano. Minha ama quer-se casar com o Sr. Manuel
Igreja?
RITA Bem
sabes quanto eu o amo.
MADALENA Então está tudo arranjado.
RITA Mas
como?
MADALENA Seu pai mostrou-se há pouco muito envergonhado, e de joelhos
diante daquela porta lhe pedia perdão, só porque supunha que a encontraria lá
dentro. Alguma fez ele por cá...
RITA Tomou
os dois por ti... E tudo eu ouvi.
MADALENA Tanto melhor. Agora é preciso envergonhá-lo mais.
RITA E
para quê?
MADALENA Um pai, quando pratica uma ação vergonhosa diante de seus
filhos, põe-se debaixo de sua dependência e não tem remédio senão fazer-lhes a
vontade. O ponto é saber-se tirar partido do segredo.
RITA E
o que faremos?
MADALENA Entrarmos neste quarto e esperar que ele venha com os soldados
e que nos encontre lá.
RITA Mas...
MADALENA Dê cá o menino, que ele não tarda. (toma o pequeno nos braços de Rita e o vai deitar no berço)
RITA Não
sei se devemos fazer...
MADALENA Pois eu sei que devemos; quando não, passaremos por cúmplices
de ladrões, porque lhes demos escapula, e ficaremos desacreditadas. Silêncio,
ouço passos! É ele! Venha, venha. (as
duas entram no quarto em que estiveram os amantes)
CENA XX
(abre-se
a porta do fundo e por ela entra Abel, seguido de Pacífico, Manuel e uma
patrulha)
ABEL (à porta) Entre, Sr. Manuel. E seu amigo
também pode entrar. (encaminham-se para a
frente) Muito estimei encontrá-los junto de minha casa.
MANUEL Vínhamos
da missa, lá da banda de cima.
PACÍFICO (à parte, para Manuel)
Por pouco que não nos pilha saltando a janela.
ABEL Desculpe-me,
se os interrompi no seu caminho; mas necessitava dos senhores, e entre
amigos...
MANUEL Pode
dispor de nós.
ABEL Obrigado.
(pegando na mão de Manuel) Meu amigo,
tenho ladrões em casa!
MANUEL e
PACÍFICO Ladrões em casa?
ABEL Sim,
e naquele quarto, que eu mesmo os fechei.
MANUEL e
PACÍFICO Naquele quarto? Então vamos a eles. (Manuel arregaça as mangas e Pacífico puxa da espada – tudo isto com
muito espalhafato – e dirigem-se ambos para a porta do quarto)
ABEL (retendo-os) Esperem, amigos.
MANUEL Nada,
deixe-me, que os levo a cabeçadas.
PACÍFICO E eu a fio de espada.
ABEL (retendo-os) Por quem são, não se
exponham assim! Agradeço-lhes o zelo. Eu disse um ladrão. Quem sabe se não é
uma quadrilha inteira? É preciso prudência e tática. Olhe, o senhor (para Pacífico) ficará aqui. (coloca-o junto do ponto) Meu amigo
Manuel, aqui. (coloca-o junto de Pacífico)
Os senhores oficiais, por aqui. (coloca-os
em semicírculo, desde a porta do quarto até junto de Manuel) E eu ficarei
entre meu amigo e o senhor, mas como não tenho arma, o senhor (para um dos soldados) fará o favor de
emprestar-me a sua espingarda. Eu é que estou mais exposto. (toma a espingarda do soldado e mete-se entre
Manuel e Pacífico) Agora façam o favor de calar baionetas. (os soldados calam baioneta) O camarada que está sem espingarda
terá a bondade de abrir a porta e fazer-lhes a intimação para se entregarem. (o soldado dirige-se para a porta do quarto,
e dando uma volta na chave e empurrando a porta, esta se abre)
SOLDADO Quem
quer que esteja aí dentro, saia para fora e nada de resistência!
ABEL Sentido,
amigos!
SOLDADO Então,
não respondem? Em nome da lei, rendei-vos; quando não...
ABEL Quando
não, faremos fogo! (metendo a espingarda
à cara)
CENA XXI
(aparecem
à porta do quarto Rita e Madalena)
RITA O
que é isto?
MADALENA (ao mesmo tempo)
Então, o que temos?
ABEL Ah!
(deixa cair a espingarda no chão, de
surpreendido, e fica estático como D. Bartolo no Barbeiro de Sevilha,
conservando os braços na posição em que sustentava a espingarda)
PACÍFICO São estes os ladrões? Ah, ah, ah! (ri-se às gargalhadas)
MANUEL Ah,
ah, ah! (rindo-se às gargalhadas, e o
mesmo fazem todos os soldados)
RITA (caminhando para ele) Meu pai, meu pai, o
que tens?
MADALENA Oh, como ficou!
RITA Meu
pai, volte a si! Sou eu! Meu Deus! Madalena, aí está o que fizeste!
MADALENA Ah, senhor! (querendo
abaixar-lhe o braço) Como está duro!
RITA Meu
Deus, meu Deus! Senhor Manuel!
MANUEL (sacudindo-o) Ah, senhor Abel!
PACÍFICO (no mesmo) Então,
o que é isto? Está galante! (grupam-se
todos ao redor de Abel e principiam uns a assoprarem-lhe a face, outros a
sacudirem-no, etc)
MANUEL Parece
morto!
RITA Meu
pai?
PACÍFICO Como diabo ficou ele estatelado!
MADALENA Mau vai isto!
RITA Meu
pai, fui eu que lhe dei escapula do quarto, sou a culpada! Não era ladrão, era
o Sr. Manuel que lá estava e que veio por mim. Diga-lhe, diga-lhe isto, senhor
Manuel.
MANUEL Sim
senhor, Sr. Abel, era eu. Vim para ver sua filha e o senhor tomou-me pela
Madalena. (Abel abaixa os braços e como
que vai tornando a si) Já se mexe...
RITA Meu
bom pai, perdoai-me, fui eu a culpada! Por causa dela.
MADALENA E eu também, por causa dele...
MANUEL E
mais eu, por causa dele...
PACÍFICO Creio que o remédio faz efeito... Então, também eu, por
causa dela. E fui o primeiro. Tratei da criança, levei abraços... Não se lembra
que me foi acordar naquela cama? Madaleninha!
ABEL (que tem tornado a si) Oh, estou traído!
RITA (suplicante) Meu pai!
ABEL (recuando, enfurecido) Deixai-me!
RITA Perdoai-me!
MADALENA (ao mesmo tempo)
Perdoai-me!
PACÍFICO (ao mesmo tempo)
Senhor!
MANUEL (ao mesmo tempo) Senhor!
ABEL Deixai-me,
deixai-me! (vai recuando enfurecido)
RITA, MADALENA, MANUEL, PACÍFICO e
SOLDADOS Senhor!
ABEL Deixai-me!
(todos o seguem suplicantes, e ele tão
cego está de furor, que, sem dar atenção ao berço, dá com as costas sobre ele e
o atira no chão com o pequeno e cai por cima)
TODOS Ah!
RITA e
MADALENA (correndo para acudirem
ao pequeno) Meu filho! (Manuel e
Pacífico acodem Abel; o soldado levanta o berço; Rita e Madalena tiram o
pequeno de baixo do velho e com ele caminham para junto da mesa e aí Rita se
assenta, tendo-o nos braços)
RITA Meu
filho, meu filho! Está sem sentido, morto!
MADALENA Meu Deus!
RITA Água
fria, água fria, Madalena! (Madalena toma
a moringa que está sobre a mesa e o derrama sobre a cabeça do pequeno. Enquanto
as duas estão ocupadas em fazerem o pequeno tornar a si, Manuel e Pacífico
levantam Abel e, sustendo-o pelos braços, conduzem-no para frente da cena)
MANUEL Então,
Sr. Abel, parece-se criança. Que é isto? Por tão pouco!
PACÍFICO O caso não é de matar crianças. Toma a coisa tão em grosso!
RITA Está
morto!
TODOS Morto?
(encaminham-se para junto de Rita)
ABEL Meu
neto morto! E fui eu, desgraçado!
MADALENA Está vivo, está vivo!
TODOS Vivo!
(Abel arrebata a criança dos braços de
Rita e o cobre de beijos. Todos, para Abel) Não o mate!
ABEL Pobre
inocente, que tanto tens sofrido esta noite pelos nossos desvarios! Que culpa
tens tu, pobre anjinho, que sejamos todos loucos? Filha, o teu proceder foi
criminoso, e só casando-te com este homem darás uma satisfação ao público.
MANUEL Ritinha!
(vai para junto dela)
ABEL (para Madalena) E tu, mulher vil, já
desta porta para fora!
RITA E
quem há de criar meu filho?
ABEL Eu!
(Pacífico e Madalena riem-se às
gargalhadas. Abel, indo para Pacífico) Insolente! (Pacífico bota a mão à espada e quer desembainhá-la; Madalena retém-lhe
o braço. Abel, vendo Pacífico lançar mão da espada, levanta a criança nos
braços e ameaça-o com ela, o que vendo Rita corre para ele)
RITA Meu
pai!
PACÍFICO Há mais tempo que com esta cara e com estes anos devias-te
empregar em desmamar crianças, e não em namorar.
ABEL Tem
o senhor muita razão.
PACÍFICO (para Madalena)
Vamos, que terás muito onde te alugares. (Pacífico
toma Madalena pelo braço e vai saindo)
ABEL (principia a passear de um para outro lado,
embalando a criança nos braços e cantando) Menino bonito... (etc, Rita olha para ele, sorrindo-se.
Pacífico e Madalena param na porta do fundo e riem-se, e nisso abaixa o pano)
FIM
Ao ator Gibe in memorian