quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Capítulo 4 - Vivências


O esquema usado em todas as oficinas foi de iniciar as aulas com a respiração reichiana acompanhada de música. Dividi os grupos aleatoriamente para que pudessem discutir o tema proposto e organizar o exercício a ser mostrado posteriormente. Cada grupo se apresentava e ao final, rapidamente, fazíamos um pequeno comentário. E o grupão, que fechava a aula indicava o momento de discutir os exercícios, falar do dia, dos problemas e da vida.

Ao analisar os relatórios das oficinas e mostrá-los, tento afirmar a ressonância da prática aplicada, bem como atestar a eficácia da convivência de cada grupo entre si e de todos entre todos para o crescimento de cada um.

Quando me deparei com os relatórios confesso que fiquei surpresa com o volume, pois sei a quantidade de analfabetos funcionais existentes em nosso país. É claro que alguns relatórios eram ilegíveis, a maioria era feita sem nenhuma preocupação com a apresentação ou com quem fosse ler. Porém, todos quiseram expressar sua opinião por escrito, o que é sempre muito relevante e deve ser incentivado.




OFICINA NA ESCOLA DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA  LOCAL - SUL DO PAÍS 
PERÍODO – Setembro/1991

As Oficinas para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) foram divididas em duas turmas, sendo pela manhã a turma do segundo grau e pela tarde a do primeiro grau. Não houve relatórios dos participantes, porém fizemos uma reunião de avaliação e todos puderam expressar nossas opiniões. Havia levado alguns textos, cópias de peças curtas de Bertolt Brecht que deixei com eles. Fiz indicações de alguns livros fáceis de serem encontrados, bem como fiquei à disposição no que pudesse ajudar. É costume no MST não se tomar a autoria de nada, portanto as publicações que saíram a seguir nem mencionavam as Oficinas. Elas foram uma grande introdução de um grande projeto que não vingou, pois saía muito dispendioso pagar as despesas mínimas de uma professora de São Paulo para ir aos assentamentos. Nunca se recebe salário, tudo é doação como colaborador. O projeto de levar teatro aos acampamentos era uma maneira de suprir o tempo ocioso dentro do acampamento. Como a ocupação é de resistência, pode-se até preparar a terra, mas não há condições de vida para um cotidiano normal. Assim como a escola funciona ao ar livre dentro das condições apresentadas, o teatro seria uma forma de encontro dos adultos e das crianças também em outro grupo, para ensaiarem, fazerem seus exercícios. Em algum lugar a idéia deve ter vingado e se não vingou, qualquer hora é hora de recomeçar. Os alunos ficaram maravilhados com a idéia de levar o teatro para o acampamento como meio de conscientização e socialização do coletivo. Sentiam-se à vontade para realizar qualquer enredo depois da descoberta e domínio do roteiro. Todos estavam mais conscientes da expressividade corporal e vocal como meio de construção de uma mensagem. Dentro do exercício eles puderam experienciar uma nova maneira de ser, bem diferente da atenção constante e até vigilância sobre si mesmo. Enfim, puderam experimentar uma liberdade possível e necessária a qualquer luta.



OFICINA ATUANDO NO PALCO DA VIDA
LOCAL – CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
PERÍODO – 19/08/1997 A 11/09/1997
                 Terças e quintas-feiras/13 às 15 horas
                 50 inscritos

Quando retornei da Oficina no MST estava convencida de que aquela maneira de trabalhar com atores e não atores dariam bons resultados e fui à busca do Centro Cultural São Paulo. Fui ao encontro de Lizette Negreiros, responsável pela política e ação cultural, entre outras, para as crianças, os jovens e os adolescentes. Somente ela poderia dar-me os parâmetros e as diretrizes para um bom resultado e, acima de tudo, se essa Oficina poderia ser útil. O empenho e dedicação de Lizette frente a seu trabalho com os jovens e sua constante preocupação com conteúdos e métodos a serem empregados com eles faz a diferença na qualidade dos trabalhos apresentados no CCSP. Não só relativo aos espetáculos, como também às Oficinas, seu crivo é bem rigoroso, se eu conseguisse passar por ele, estaria mais tranquila. Não precisaria mencionar, mas no meu caso em particular é bom, que a entrada no CCSP não dependesse somente Lizette, colega de TPS de tantos anos, mas de instâncias superiores, portanto se pairava uma dúvida...

Entreguei uma proposta aberta à direção do CCSP, não restringi idade, deixei que a seleção pessoal fosse formando uma turma eclética e satisfatória. Deu certo.

Iniciei com uma entrevista com grupos de participantes, durante quatro dias consecutivos, nos quais pude avaliar o real interesse de cada participante. Isso fez com que eu tivesse alguma certeza quanto à evasão, tão comum em cursos de curta duração.

A primeira Oficina transcorreu muito bem – pude ministrá-la inteiramente a contento e acredito que os alunos também sentiram assim, haja vista o resultado positivo dos relatórios comentados a seguir. Minhas expectativas quanto a trabalhar no Centro Cultural foram alcançadas e ultrapassadas, pois tive liberdade de desenvolver as aulas inteiramente. Depois dessa experiência posso afirmar que há carência desse tipo de curso, que quase não pede pré-requisitos, que constrói uma turma heterogênea como a nossa: professores, estudantes de direito, secretariado e teatro – profissionais que aspiravam melhorar seu desempenho comunicativo, com idades que variavam de 15 a 54 anos.

Dentre os relatórios apresentados pelos participantes, destacam-se pontos em comum, os quais são relevantes para comprovar a eficácia da Oficina.

Fica explícito nos relatórios que todos tiveram a compreensão exata de que os exercícios de respiração auxiliavam na oxigenação do corpo, a perder a timidez e soltar a voz, mas ao mesmo tempo entender algumas de suas limitações, pois a Oficina possibilitou uma nova visão de si mesmo. Em vários depoimentos encontram-se afirmações de que aprenderam a lidar melhor com as situações do cotidiano e com isso tiveram uma surpresa consigo mesmos. Aprenderam a enfrentar os medos, pois conseguiram perceber que vem da mente. Reclamaram muito da curta duração da Oficina, talvez esperando ingressar num curso regular.

Pessoas de várias idades e profissões, juntas, propiciaram a interação de cada um no grupo, a auxiliar e contar com o próximo, desenvolver a convivência em grupo, como também melhorar o aprendizado para saber lidar com as situações do cotidiano. A aplicação dos exercícios no dia a dia e saber colocar em prática o dizer “não”, o que para nós brasileiros é incomum, foi também observado nos relatórios.

Segundo Elissandra [1], que me auxiliou nas análises: “As mulheres no curso, segundo os relatórios, apresentaram maior espontaneidade, falaram mais dos seus sentimentos, detalhavam com precisão os exercícios e não demonstraram temores quando expunham suas idéias. Os homens, mais contidos e objetivos, foram diretos e poucos comentaram sua experiência pessoal.”.


  
OFICINA VIVENCIANDO O TEATRO: UMA APTIDÃO PARA A VIDA
LOCAL – CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
PERÍODO – 23/10 a 11/12/1999
                Sábados/10 às 13 horas
                30 inscritos (com 2 mensalidades de R$ 20,00)

Com uma Oficina encomendada pela Coordenadoria do CCSP, dessa vez com cobrança de mensalidade, confesso que fiquei apreensiva, porém foram tantos inscritos que me tranquilizei. A primeira Oficina havia obtido excelentes resultados e agora o perfil dos participantes foi definido entre adolescentes e jovens, o que definia o grupo de trabalho. Procedi como da primeira vez fazendo um bate–papo-entrevista.

O espaço que nos foi designado era pequeno - uma das salas de ensaio, para o número de participantes era difícil, porém não havia alternativa. Depois de montada a Oficina e contratadas as pessoas é que se pensa no espaço, e não é culpa deles, é falta de vontade política em liberar as salas de espetáculos para aulas de teatro. Como sempre a afluência foi grande de interessados e a seleção efetuada pessoalmente não deixou dúvidas quanto à escolha dos 30 participantes. Não tivemos evasões, porém nem todos fizeram relatórios. Dos que pude analisar, a maioria foi unânime em afirmar o equilíbrio que a respiração proporcionava. O desenvolvimento da paciência para com os outros num espaço tão pequeno, também foi um fator que chamou a atenção dos participantes. Na expressão dos alunos, “sair do umbigo” foi muito difícil, mas valeu a pena, porque propiciou o encontro com o outro, ao mesmo tempo em que despertou a criança que existe dentro de nós e que fazemos questão de esquecer. Aprender a ouvir e respeitar o comando do professor ou orientador foi novidade, que os participantes destacaram em seus relatórios. Penso que para o bom andamento de uma aula de teatro é preciso muita disciplina, porque o ambiente já é dispersivo, então tento transmitir que há um comando com tranqüilidade para eles. Para os que serão atores mais tarde, se encontrem preparados quando enfrentarem o comando de seus diretores de teatro, cinema ou televisão.

Acredito que do ponto de vista de conteúdo a Oficina respondeu ao seu intento, pois os relatórios dos alunos e os “bate-papos” informais com alguns participantes sempre mostraram boa receptividade. O fato de utilizarmos o horário matutino aos sábados foi bem aceito, causando-me surpresa a assiduidade dos participantes, mesmo os finais de semana prolongados. Todas essas dificuldades foram um grande aprendizado e um grande teste, porque nos propiciou aprender a reverter as impressões negativas iniciais para positivas. 



OFICINA TEATRO - A LIBERDADE DO SER
LOCAL – CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
PERÍODO – Abril a Julho de 2001
                Sábados/10 às 13 horas e 14 às 17 horas
                50 inscritos em cada turma

Turma 1 – Eram muitos adolescentes, quase todos estavam se expressando pela primeira vez. Nos grupões iniciais, que faço sempre aos finais das aulas, eles mal falavam e se revelaram no decorrer dos dois meses. Segundo os relatórios as notícias de jornal ajudaram a pensar melhor, chegaram a definir as aulas como oficinas de cidadania. Os temas que mais buscavam nos jornais eram os problemas da periferia, como violência, drogas e prostituição; cadeia, isso com forte influência dos programas policiais de televisão. Era a época do apagão, então surgiram muitos exercícios sobre o assunto explorando o lado positivo de educação para a economia de luz, como também a crítica culpando o governo pela ausência de providências.

Para os adolescentes o contato com a respiração foi muito importante, tomando-a como um exercício de relaxamento. 


Turma 2 – Essa turma era principalmente de jovens que tinham como objetivo resolver o problema da timidez e da dificuldade em se comunicar. Não havia um interesse específico no teatro em si, mas nos resultados que ele pudesse dar. Por isso a surpresa em se ver improvisando ou relaxando com uma nova maneira de respirar era muito grande. O mais importante para todos eles era a concentração, que eles souberam desenvolver muito bem. Os temas escolhidos nos jornais foram, principalmente, aqueles ligados à política, à televisão, como os programas de fofocas e os problemas da sociedade em que eles vivem.


Turma 3 e 4 – O uso dos jornais e das revistas foi muito enfatizado por essas turmas em seus relatórios. Isso ocorreu talvez porque as turmas fossem muito heterogêneas em idade, proporcionando um maior debate de idéias. Porém, principalmente para a turma 3, o que todos apreenderam da Oficina foi o desenvolvimento de um maior equilíbrio mental e físico através dos exercícios de respiração, assim como nos jogos. A turma 4 tomava a Oficina mais como uma terapia. Nas palavras de Elissandra, minha assistente: “Esta turma mostrou a importância de usar os jornais e revistas no momento da criação. Comentar e debater temas e notícias estabeleceu um olhar crítico dos jovens e adolescentes, demonstrando no grupo o necessário questionamento e insatisfação perante as desigualdades e negligências sociais. Ressaltando a necessidade da leitura e a importância política, moral e social do teatro em nossas vidas.”.

Para poder dar conta, plenamente, de uma Oficina pela manhã e outra à tarde, convoquei dois assistentes, meus ex-alunos – Alessandra e Salomão [2] que me ajudaram muito.

Pedi a Alessandra Gisele Daniel, Lili, minha aluna e assistente, para que me ajudasse na análise dos muitos depoimentos. Por fim, aconteceu um trabalho extremamente profícuo que gerou análises e considerações tanto minhas quanto dela. Além do depoimento feito a época em que cursou as Oficinas, Lili produziu um depoimento geral de sua participação como aluna e assistente, inclusive em outros grupos.

Fabiana S. Magalhães [3] também fez o mesmo em outro estilo, porém, em ambas, se vê a análise do passado através do momento presente. Lili em seu relato enfatiza sua luta pessoal contra a timidez e credita ao trabalho nos grupos o resultado de sua mudança. Quando foi minha assistente pode mostrar sua desinibição.

Terminada a terceira Oficina – A Liberdade do Ser, um pequeno grupo se formou querendo aprofundar o estudo teórico sobre o teatro. Então montamos um pequeno grupo em minha casa com aulas uma vez por semana onde estudamos a história geral do teatro, bem como o teatro brasileiro.

Fizemos também uma experiência num espaço no bairro do Jabaquara, cedido por uma aluna, onde pudemos aprofundar os exercícios das oficinas, todos eram ex-alunos e queriam seguir em frente com exercícios mais elaborados em busca de montar um grupo de teatro. Infelizmente, o espaço teve de ser ocupado e a turma se dispersou.

Salomão Cohen se destacou no curso tanto quanto Lili. De um adolescente de 16 anos para um jovem mais ativo, dinâmico e deixando sua iniciativa ser despertada. Após a Oficina A Liberdade do Ser, ele manteve contato, sempre disposto a reunir a turma, sempre participando dos cursos. Quando resolvi chamá-lo para ser meu assistente, ele mostrou-se muito interessado e cumpriu sua função com precisão. Com esse aprendizado e com o talento nato de Salomão para a interpretação e a direção, aplicou o que aprendeu na sua turma de escola, dirigindo um espetáculo com texto de outro aluno. Como estavam em conclusão do terceiro grau, o trabalho de Salomão foi extremamente gratificante e marcante para a escola.

Depois de toda essa iniciação, pensei que ele fosse se interessar em fazer um curso superior de artes, em crescer e atuar em teatro. Porém, isso não aconteceu, ele permaneceu em contato conosco, mas não se interessou por nada referente a teatro. Esboçou a vontade de cursar cinema, mas não perseverou na idéia. Enfim, é com pesar que não inclua um relatório seu, seja porque não soube ou não quis fazer, seja porque não tenha mais tempo para isso. É penoso ver um talento se perder por nada, por falta de direção, de determinação, talvez esse seja o lado ruim de um curso. Quando percebemos que o aluno que dispunha de tempo, talento, vontade não vinga, não aproveita as oportunidades oferecidas pela vida.

Fiz questão de deixar aqui esse relato, pois ele vai de encontro ao “susto” que a prática de Reich pode produzir. Estar mais presente no mundo, em sua própria vida, assumir riscos e responsabilidades pode ser, às vezes, assustador para alguns. A liberdade corporal exige controle, desenvolvimento da inteligência, maior conhecimento emocional de si mesmo, tudo isso pode produzir um efeito contrário devastador. Embora seja um risco pequeno, pois apenas ele apresentou esse comportamento, não deixa de ser uma perda.

Por outro lado, quantas revelações se deram nos grupos durante os exercícios, quando o ser se deixa simplesmente representar, brincar, jogar, sem censuras. Muitos participantes se revelaram assim, percebendo em si mesmo um dom antes encoberto. Foi assim com a Lili e a Fabiana e tantos outros que teremos a surpresa de encontrar algum dia num palco ou num estúdio. Os exercícios também trouxeram a todos aqueles não atores uma maneira nova de encarar a vida, de abandonar o preconceito, de ser mais solidário com os outros. Tornaram-se atores na vida!

O grupão, de uma forma geral, revelou a vida de cada um, foi o cerne da Oficina para cada participante, pois eles tinham um momento e um espaço para se expressarem. Aprendemos a ouvir críticas, a fazer comentários sem agredir, aprendemos a nos defender. Sem resvalar para a terapia, os grupões propiciavam um encontro de todo grupo através de uma dinâmica, porém sem bloqueios. Chegamos a dizer coisas sérias, tivemos problemas sérios, mas nunca tivemos um momento de agressão, um gesto mais ousado, nem dentro, nem fora da sala de aula. Eram adolescentes de diversas classes sociais e econômicas, porém todos ali eram iguais e havia respeito entre todos. Conseguimos colocar uma teoria em prática e respeita-la plenamente. 



[1] Elissandra Gisele Daniel foi minha aluna na Oficina - Vivenciando o Teatro uma Aptidão para Vida, minha assistente na Oficina - Teatro A Liberdade do Ser e minha colaboradora na análise dos relatórios.
[2] Salomão Cohen foi meu aluno na Oficina – Teatro A Liberdade do Ser
[3] Fabiana S. Magalhães foi minha aluna na Oficina – Teatro A Liberdade do Ser


VISITEM TAMBÉM
WWW.BLOGDOVICTORINO.BLOGSPOT.COM.BR