REFERÊNCIAS SOBRE A PEÇA – 16/02/1972
“Um grito de alerta”
“Pequenos
Assassinatos” é, sem dúvida, um grito de alerta. Jules Feiffer não pretendeu,
com esta peça, dar uma solução ao problema da violência, entretanto, nenhum
autor norte americano se aprofundou tanto nos paradoxos da classe média
americana, no que se refere ao assunto.
A
peça é uma sátira, não porque Feiffer encare o problema como fato humorístico,
o que aliás não é, mas porque ele usa a sátira para que o público possa melhor
criticar os acontecimentos. O riso é a melhor forma de participação. Como ele
próprio diz: “a classe média americana está
enlouquecendo tradicionalmente, pois não consegue sair do labirinto da
violência.” Por isso, ele a apresenta através de uma família tradicional e
pacífica, que, ao abrir-se o pano, já está, sem perceber, sob a pressão da
máquina da violência. Com ela poderemos ver o que irá acontecer se todos, em
todos os lugares, não tomarem consciência da necessidade de que a razão e o bom
senso dominem o mundo.
A
violência, um mal que destrói a sociedade, não nasce com o homem, e não existe
por si, a não ser quando a praticamos sob múltiplas maneiras. A violência é
fenômeno social, como é a justiça, a política, a economia e não é muito difícil
falar nela numa época que conheceu Auschwitz, Hiroshima, Biafra e o Vietnann.
O
fato de vivermos ambientados num clima cotidiano de violência, levou-nos ao
absurdo de que as perspectivas de uma guerra atômica não nos horrorizam mais.
A
história não está regida por deuses ou pela fatalidade, ela, para nosso mal ou
nosso bem, é escrita pela nossa própria ação, quer como indivíduos quer como
coletividade. Se a verdade tem demonstrado que a violência, debaixo de suas
várias formas, não pode ser eliminada da existência social, total ou
parcialmente, a única atitude racional consiste em compreender as
circunstâncias pelas quais ela se produz e fazermos todos os esforços que
estejam ao nosso alcance, para dominá-la. Caso contrário vai acontecer o mesmo
que aos seus personagens da peça, na visão final de Feiffer, onde ele nos dá a
imagem da agressão já instalada de ambos os lados e o resultado disso é tão
nítido que podemos chegar a seguinte conclusão: a violência está destruindo a
sociedade, e o que faltou, ao mundo contemporâneo e industrializado, foi um
pouco da visão trágica da existência para ter evitado essa explosão violenta
que Feiffer retrata tão fielmente.
A
família desta peça enlouquece porque não tem condições de sobrevivência. Até
determinado instante ela tenta se manter pacífica, resiste a ponto de tornar o
seu “habitat” numa fortaleza. Motivada por mais uma série de fatores agressivos
perde a razão e entra no jogo como todos
que a cercam, felizes e satisfeitos, alienados.
Os
personagens são todos vítimas de uma maneira ou de outra: são, violentamente,
envolvidos pelo sistema desumano da vida urbana. A visão final não é uma lição,
uma vingança, ou um revide. É sim, um alerta. Não podemos terminar nos destruindo
uns aos outros como nos filmes “FAR WEST”. O que é preciso, isso sim, é dar um
basta, colocar o raciocínio para funcionar e procurar a gênese da violência,
para não sermos alcançados tal como o final da peça. Agride-se porque a moda é
agredir, isso é a conclusão da peça de Jules Feiffer. A comédia diverte, mas os
tiros incomodam. Indiscutivelmente a peça foi escrita procurando demonstrar que
há urgência de soluções para que não haja o caos, e que a vida moderna é uma
luta constante pela sobrevivência, o que é tão bem retratado nesta fala da
peça: “Eu divido meu dia em etapas. Cem mil etapas. Me levanto de manhã e
penso, OK, nenhum atirador furtivo conseguiu me pegar antes do café. Vamos ver
se eu consigo dar minha caminhada matinal sem ser castrado. OK, terminei minha
caminhada, vamos ver se consigo chegar em casa sem que um tijolo, jogado do
último andar do edifício, caia na minha cabeça. OK, estou seguro no hall, vamos
ver se eu consigo subir no elevador sem me enfiarem uma faca no lombo. OK,
consegui chegar no meu andar, vamos ver agora se, ao abrir a porta, não
encontro assaltantes no corredor, OK, já estou no corredor, vamos ver agora se
abro a porta e não encontro toda a família esquartejada no living. Cidade
amaldiçoada!”
JULES
FEIFFER É TALVEZ UM DOS MAIS CONHECIDOS HUMORISTAS AMERICANOS, E SEUS DESENHOS
SÃO CONHECIDOS EM TODO MUNDO. Escreveu sua primeira novela “Harry, the rat with
women” em 1963. Depois escreveu três peças de teatro: “God Bless“, “The White
House Murder Case” e Little Murders”(Pequenos Assassinatos) e seu último
trabalho foi roteiro original do filme “Carnal Knowledge” com Mike Nichols,
grande sucesso nos Estados Unidos e Europa e que virá ao Brasil com o título de
“Ânsia de Amar”. Alguém perguntou a Feiffer porquê ele tinha se dedicado também
a escrever peças teatrais e roteiros cinematográficos, já que
fazia tanto sucesso com seus cartoons, disse ele – “Primeiro, os cartoons
tinham um público relativamente restrito, e segundo os cartoons começaram a ser
irrestritamente aceitos pelo grande público, que pensei que estava sendo mal
entendido, e então eu me dediquei a formas nas quais poderia ser melhor
compreendido, diminuindo assim meu público. Não me peçam para explicar isto.” (ORC)
DECLARAÇÃO (em entrevista) ÚLTIMA HORA - 11/02/1972
“O
filme “Little Murders” exibido recentemente em São Paulo mostra a violência
reinante de nossa época, onde os personagens são lineares. Na peça eu pretendo
colocar mais humor negro, mais sarcasmo, mostrar mais o problema da violência.
Quero deixar bem claro, ao contrário do filme, que a família representa uma
classe social, a média, que está enlouquecendo aos poucos, porque é a única que
não se manifesta. Sua única preocupação é a sobrevivência. Eu não quero a
mensagem olho por olho, dente por dente, mas sim que a peça seja um grito de
alerta. O problema é todo mundo tomar consciência do que está acontecendo a
nossa volta ou então vamos acabar mesmo, um atirando no outro, para matar.
Estou confiante na montagem por se tratar de um problema atualíssimo.”
ENTREVISTA - ÚLTIMA HORA - COLUNA RONDA - A OSWALDO MENDES -
24/03/1972
“A VIOLÊNCIA ESTÁ AÍ “
Muita
gente se diverte com as manchetes sensacionalistas dos jornais “especializados”
em crimes, lê com gosto as revistas do gênero, procuram filmes onde a violência
impera. E tudo isso lhe parece coisa do outro planeta. Mas, segundo Osmar
Rodrigues Cruz, diretor de Pequenos Assassinatos, esse é o perigo, a nossa
convivência com a violência, e é esse o foco atingido pela peça de Jules
Feiffer: - “Pequenos Assassinatos” mostra o
perigo de caminharmos para a violência, individual e coletiva, em tudo. Veja a
televisão: de dez programas, seis são filmes que têm mortes, crimes,
assassinatos. Para se mostrar que o crime não compensa, usa-se de tantos
recursos que acabam tornando o crime simpático. E o pior de tudo isso, o homem
se acostumar à violência.
Há
quem goste de ficar discutindo se a violência é instintiva no homem ou é fruto
do meio onde se vive. Para Osmar a discussão está encerrada, porque ele é dos
que definem a violência como resultado de um contexto social, e isso tentará
deixar claro no seu espetáculo: - É difícil falar desse problema. Mas se a
violência não tem cura, como muitos apregoam, haverá pelo menos um meio de se
eliminar um pouco daquilo que a gente vê por aí. Eu procurei não fazer um
espetáculo óbvio, querendo tornar claras, coisas que o texto já explicita bem.
É um espetáculo realista, apesar do autor usar uma série de elementos que dão a
sensação do absurdo.
Pequenos
Assassinatos é o retrato da vida de uma
família pacífica, respeitadora das instituições, mas que é levada à violência,
que se torna um esporte. Depois da morte da filha, a família entra num processo
neurótico ainda maior, fecha-se em casa colocando trancas nas portas (para Osmar
Rodrigues Cruz, esta é a visão do futuro, formulada pelo autor): - Faço sentir no espetáculo, que a violência
vem sempre de fora. Todos na peça são pacíficos e se agridem uns aos outros. A
apatia do genro, por exemplo, é também uma forma de violência, e a maior que
conheço: a violência do sujeito que se aliena, a violência da não participação.
Osmar
Rodrigues Cruz fala ainda do próximo cartaz do Teatro Oficina: - As personagens de “Pequenos Assassinatos”
são traçadas dentro de um clima de humor crítico que poucas vezes se vê no
teatro. O filme que se fez, baseado na peça e que muita gente assistiu, não era
suficientemente engraçado para despertar o espírito crítico do espectador. Por
isso acredito que o conteúdo crítico da peça é maior que o do filme.
ENTREVISTA - FOLHA DE SÃO PAULO - A
IBANEZ FILHO - 29/03/1972
Quando
alguém nos conta que foi assaltado, roubado, deixado nu na rua, nós não nos
admiramos mais. Freqüentemente apenas comentamos de que a cidade à noite, está
muito perigosa. Nem mesmo a possibilidade de uma guerra atômica consegue nos
assustar. Nós a discutimos como se fosse apenas uma decisão entre outras.
Estamos nos acostumando com a violência sem tomarmos consciência do absurdo da
situação.
PEQUENOS ASSASSINATOS é a peça mais atual dos últimos
tempos. O problema da violência é extremamente contemporâneo e apesar do Feiffer declarar que a peça trata da onda de
assassinatos que assolou os Estados Unidos depois da morte de Kennedy e da
guerra do Vietnam mesmo para uma pessoa que não conheça estes fatos, mas vive
em uma cidade, a peça tem importância. Provavelmente aqueles acontecimentos
inspiraram a peça mas ela não faz nenhuma citação explícita deles. Os
personagens encaram a violência da forma mais simples possível, embora cada um
tenha uma reação diferente. Isso acontece porque o Feiffer escreveu cada um
representando uma atitude da burguesia. A filha é pragmática (levanta de manhã
com um sorriso que procura manter durante todo o dia apesar de enfrentar
situações terríveis); o fotógrafo é niilista e no decorrer da peça se
transforma em anarquista que, veja bem, não é político mas uma postura perante
a vida. O juiz é o protótipo do conservador enquanto que a mãe representa o
sistema matriarcal norte-americano (dirige a casa, faz compras, organiza tudo,
etc.) O pai, além de pragmatista, é temeroso e respeitador das instituições. E
o reverendo sintetiza todas as correntes existencialistas dos Estados Unidos. O
filho é totalmente desajustado como certa parte da juventude classe-média dos
EUA. Todos os personagens são cruéis, como é cruel o próprio Feiffer. Por
exemplo, o fotógrafo destrói a instituição casamento com sua atitude e diz que
a cerimônia foi bonita mas um pouco adocicada. O juiz por sua vez, quando faz a
apologia de Deus, mostra um Deus terrível, castigador, que atormentava sua mãe
e na verdade seu objetivo alcança um final totalmente diverso: se Deus é tão
terrível, terá sentido pedir a sua ajuda?
(in Osmar Rodrigues Cruz - Uma Vida no Teatro Hucitec 2001)