O sentimento artístico (2ª parte)
Há outra
fase do sentimento da vida. Quando o indivíduo cria uma vida de si mesmo
criando em sua imaginação, ele está conduzindo inadvertidamente sua memória
empírica e reconduzindo-as a combinações mais novas. A vida é a matéria prima
sobre a qual são feitos os sonhos. Através desta nova vida imaginária, o
indivíduo atinge reações distintas de sentimento, porque os seus sentidos
trabalham em imaginação. A natureza de suas imaginações determina a natureza de
suas reações de sentimento – reações nascidas diretamente de suas criações
imaginárias, porém indiretamente de sua memória de experiências da vida.
O
sentimento imaginário – não o sentimento proveniente do contato direto com a
vida ou a memória – chega mais hermético em relação à representação teatral. A
peça, os seus personagens e episódios são os próprios produtos da imaginação. O
sentimento artístico chega quando o ator está em analogia (do francês = “rapport”)
completa e imaginária com o personagem. É este sentimento artístico ou teatral
que suscita ao ator à expressão física e vocal.
Corpo e
voz preparados não são restringidos em sua correspondência com a imaginação, a
flexibilidade da harmonia física e vocal dependerá da flexibilidade da
imaginação. A expressão física e vocal nascida do sentimento artístico é
verdadeira expressão teatral. A vida concebida na imaginação é maravilhosa,
comparada com a vida material ou a vida impressa na memória. A imaginação é um
resguardo contra as realidades brutais da vida. Atinge os nossos ideais e
aspirações. Debuxa o que não é, mas o que será. Visto que é seletiva, ela
impede as brutalidades e excessos da vida. De fato, a imaginação pode criar
imagens horríveis bem como maravilhosas, porém são maravilhosamente
horríveis. A imaginação pode ser o espelho em que a matéria-prima da vida se
reflete, porém a própria reflexão é boa para observar. Visto que a
matéria-prima mudou em sua reflexão, segue-se que os sentimentos oriundos da
concentração sobre essa nova vida refletida tenham correspondentemente mudado.
Eles tornam-se um cristal límpido, vivo, como fazem num mundo de imaginação. O
sentimento da vida brota do contato direto com a vida.
É o seu
sentimento imaginário ou artístico que insinua a expressão artística no teatro.
O ator-artista em primeiro lugar concebe o personagem na imaginação. Quando a
identificação do ator e do personagem estiver completa, ele revela o personagem
através do corpo e da voz. Se tomar contato com outros personagens e coisas no
palco, o ator como personagem deve manter abertos os canais do sentido, através
dos quais a impressão e a harmonia chegam e voltam. Nesse contato nasce o
sentimento. Visto que a realização do personagem é uma concretização de um ser
imaginário em carne e sangue, o sentimento associativo deve diferir daquele
sentimento oriundo do contato da vida com pessoas e coisas. Por exemplo, se o
ator Otelo realmente matou a atriz Desdêmona, ela não estará viva para repetir
a cena da morte, na noite seguinte. A atriz estará morta e o ator provado como
assassino. A insanidade temporária será a sua melhor defesa. Mas, um júri inteligente
podia ser justificado, condenando-o como assassino de primeiro grau, no ponto
em que ele foi mau ator. Quando um artista representa Otelo, Desdêmona morrerá
imaginariamente e não realmente. Sua morte artística será efetuada de acordo
com as leis da imaginação. Tais leis não negam que a atriz em carne e sangue é
mortal.
À luz
desta análise pode-se prontamente ver quão falso e superficial é o sentir de
muitos atores no palco. Suas caracterizações sofrem porque não farão os
personagens e os episódios a sua fonte de estudos e inspiração. Muitos deles
lançarão os seus próprios sentimentos pessoais sobre o personagem, até um ponto
em que o personagem não é mais inteiro ou mesmo parcialmente realizado. Os
sentimentos pessoais do ator e os sentimentos imaginários do personagem
combinam-se conscientemente. Mas, subconscientemente, a riqueza dos sentimentos
pessoais do ator, nascidos do viver integral, alimentará sutilmente os
sentimentos do personagem; preparado o ator, criará e obedecerá ao personagem
assim concebido na imaginação. Outros atores recorrem à “garganta” ou forçam os
seus sentimentos. O resultado é a tensão nervosa. Ainda outros confiarão num
modelo externo técnico de movimento e voz, como substituto da expressão
verdadeira, genuína, artística. Não existe substituto para o verdadeiro
sentimento artístico.
Considerando
que, na vida real, os sentimentos podem brotar de três fontes: contato direto,
memória e imaginação, no teatro eles brotam somente da imaginação. Tudo no
palco é imaginário. Portanto, os sentimentos brotam dessa vida imaginária. Os
sentimentos do ator estão num sentido real, porém imaginariamente real, e
brotam da vida seleta e perfeita do palco. No teatro, a expressão é imaginação
tornada visível e audível.
Então o
sentimento no teatro deve sofrer as leis teatrais: leis baseadas no fato de que
o ator está vivendo num personagem além de si próprio, num reino imaginário,
sobre um palco, num teatro, e diante de uma plateia.
(IORC)
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