A ANTECIPAÇÃO
Tendo
adquirido sensibilidade, o ator acautelar-se-á com medo de que caia no abismo
da antecipação. A intimidade com um personagem e outros personagens, suas ações
e reações, a questão do assunto, a forma e o modelo do papel e da peça,
produzem a antecipação que, por sua vez, mata a criação. Quando antecipa o
que está por vir, o ator coloca a carroça adiante do cavalo, e faz a coisa
seguinte (e que mal) antes do que a atual. Quando são supostos os
resultados, o ator falha ao criar as causas que os formam. Percorre o modelo
mecanicamente, contando mais, durante o ensaio solitário, com sua lembrança de
ações e reações, condicionadas pelo ensaio passado, que com sua sensibilidade
até a realidade atual. Quando o ator antecipa, raramente consegue aquela
natural flexibilidade de movimentos e de voz, através da coordenação do
espírito com a imaginação, como ele faz somente quando, pela sua sensibilidade,
constrói a situação da realidade do momento.
Como
vencer a intimidade, a antecipação e a recordação, inimigos implacáveis da
criação? Como tornar a sensibilidade uma norma em seu lugar? Estas são questões
complicadas. Os atores que apreciam longos cursos estão continuamente diante
delas. Eu presenciei três representações de uma peça de sucesso, em intervalos
de dois meses, por atores cuja preparação preliminar pareceria assegurar-se
contra a possibilidade da intimidade, antecipação e memória, e ainda em cada
representação eu podia descobrir uma deterioração progressiva, uma rancidez
incipiente e uma queda que prejudicavam a verdadeira criação do personagem e da
situação. De fato, meu conhecimento “a priori” das situações da peça pode
ter-me prejudicado em meu julgamento dos atores. Também eu, como espectador,
posso ter-me antecipado. Mas senão, então por que tal deterioração? Cada
repetição de uma situação deve depender da lembrança da criação original? Ou é
impossível combater a reminiscência da vida passada e criar de novo o que foi
antes criado? Tais questões são vitais porque a arte do ator é uma arte de
repetição.
Antes que possa começar
vencendo a intimidade, a antecipação e a recordação, o ator deve acreditar
na ficção, de que o desdobramento da situação não se desenrolou antes, e
que novamente o seu desdobramento depende de como ele se comporta agora. Seu
conhecimento da conduta do personagem “a priori” não deve afetar o seu
comportamento atual. Ele identificar-se-á e servirá somente o personagem.
Quando o ator acredita que as situações estão acontecendo pela primeira vez,
fará duas apenas depois de uma ter sido criada, três
apenas depois de duas, etc. Ele atravessa o limiar da porta antes dela
estar aberta, se acaso estiver fechada, ou senta-se numa cadeira quando houver
uma, ou zanga-se porque um outro personagem fê-lo zangar-se. O ator
verdadeiro reage às ações. Se a ação for sincera, então a sua reação àquela
ação deve ser também sincera, se se considerar tal ação dentro da esfera de sua
concentração. A sensibilidade nasce do desejo de concentração, o qual
finalmente submete a intimidade, a antecipação e a recordação. O desempenho
– disseram William Gillette e Joseph Jefferson de Sherlock Holmes e Rip Van
Winkle, respectivamente famosos – não é só produção, mas reprodução. O
desempenho deve criar a ilusão da realidade. Ilusão? “No mais alto plano –
disse Bernard Shaw – não se representa, vive-se”. As reações pantomímicas e
vocais do ator nascem desse fervor de crença dele, cuja substância é muitíssimo
rara em nosso teatro: a espontaneidade. (ORC)
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