sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Capítulo 3



Formulação da proposta e do método


As escolas regulares de Primeiro e Segundo Graus, particulares ou públicas, têm pouco interesse em inserir disciplinas que desenvolvam a arte, sejam elas teatro, música ou artes plásticas. Há uma grande dificuldade por parte dos dirigentes ou dos próprios professores em reconhecer a importância dessas disciplinas como fundamentais para o desenvolvimento da multidisciplinaridade e como complemento da interdisciplinaridade. Essa inserção propiciaria ao aluno um aprendizado e um desenvolvimento global mais eficaz, mostrando que ele está inserido no mundo em que vive, onde aplicará o que irá aprender. Além disso, compondo com outras disciplinas situações novas para o aluno, seria um fator de pesquisa e maior aprendizado. Contrariamente, o ensino geralmente voltado às disciplinas regulares e “necessárias” visando ao futuro vestibular, encastela o aluno na escola e isola-o do mundo real. Não fazem por promover o desenvolvimento humano, as potencialidades interiores do aluno. Algumas poucas experiências, com sucesso, vêm sendo feitas no sentido de inserir nas escolas disciplinas de humanidades e artes.

O que mais vem ocorrendo é que os cursos livres de artes, principalmente de teatro, acabam por cumprir o papel alternativo e ao mesmo tempo complementar que a escola deveria cumprir. As Oficinas oferecidas, tanto pelo Estado como pela Prefeitura de São Paulo, que seriam a priori para reciclagem de alunos e profissionais de artes, daí o nome “oficina” – um lugar de reparos, um lugar onde se possa trocar experiências, descobrir novas técnicas -, passam a ser cursos de pequena duração (o que é comum para uma oficina), porém com a característica de um curso de iniciação, no caso iniciação teatral. O aluno vem em busca não de descobertas para o seu ser, como aconteceria no processo escolar, mas por não poder pagar um curso de teatro, vem em busca do “milagre da oficina”, que fará deles atores profissionais em um ou dois meses. Essa expectativa vem misturada com uma boa dose de timidez a ser vencida, através do teatro, porque alguém, na escola disse, que já passou por essa experiência e deu certo. Ora, na escola regular há a disponibilidade de tempo, há um longo processo a ser cumprido e vivenciado, na Oficina não, o tempo é exíguo e dentro dele obter um resultado positivo é o mais importante para os alunos e para o professor. Existem lugares até que pedem um trabalho final, acreditando com isso que o sucesso de uma Oficina reside na representação teatral propriamente dita. Sempre me recusei a tal processo, pois acredito que o resultado de uma Oficina é muito mais de uma experiência interior e individual.

Assim sendo, o panorama das oficinas de teatro e mesmo dos cursos livres não difere muito em seu conteúdo e seus participantes. Diante dessa realidade, do perfil eclético dos alunos, da variação acentuada de faixa etária, foi preciso conceber uma introdução a essas Oficinas, geralmente feita na entrevista/seleção e um formato de curso que municiasse o aluno de uma pré-alfabetização do que é teatro – uma prontidão para o incentivo a não só buscar necessariamente uma carreira, mas principalmente, a sentir o valor do teatro, sua importância dentro da cultura de nosso país e dentro do seu próprio desenvolvimento.

Num país como o nosso tão carente de tudo, desde bens materiais, emprego, até um desenvolvimento interno mais aprofundado, uma Oficina de Teatro deve, primeiramente, mostrar ao aluno que para ser ator é preciso uma preparação, um conhecimento da profissão. É como a iniciação em qualquer profissão, não há diferença entre médico e ator, entre advogado e pintor ou entre engenheiro e músico. Todos são profissionais que um dia despertaram para suas profissões por meio de uma tendência, do talento e da vontade natos. Talvez, por vezes, tenham sofrido a influência do próprio meio, da família ou da necessidade. O mais preponderante é que se coloque nossa profissão como algo importante e sério para a sociedade, como fator de mudança e influência de costumes e hábitos.

Mostrar ao aluno que não sabe utilizar o espaço público, nem sabe que o lugar onde está é de todos, que a Oficina é gratuita porque já foi paga por ele ou por seus pais, em impostos ou taxas que sustentam os espaços públicos, é o primeiro passo. Sempre fiz questão de enfatizar isso, porque geralmente há muita evasão em cursos gratuitos, exatamente porque os alunos pensam que não pagam, então comparecem quando querem. Ao ingressar no espaço público das Oficinas os alunos não respeitam o ambiente onde transitam e utilizam. Então, a fim de conscientizá-los disso, no primeiro intervalo do primeiro dia de aula vou verificar o banheiro que já está sujo, sendo que pela manhã as faxineiras haviam deixado tudo limpo. A segunda parte da aula certamente tem uma preleção, engraçada, de como se deve utilizar qualquer espaço que seja, que se deve deixar a sala e o banheiro como foram encontrados, ou seja, em ordem e limpos. Sem esses hábitos de uma consciência a mais básica, alguém quer ser alguma coisa? Todos ouvem atentamente, deixam tudo em ordem, e voltam em massa na aula seguinte trazendo mais alguém para poder encaixar no curso. Voltam, sobretudo, com a lição aprendida, provando a avidez que os jovens tem de aprender, e aprendem rápido, porque são inteligentes e querem melhorar, falta-lhes incentivo e paciência para uma formação educacional básica. É essa educação que tanto faz falta em nosso país. Podemos ter computador, celular, tecnologias de ponta em medicina, porém não desenvolvemos nosso ser para se adaptar às tecnologias de ponta, com qualidades interiores e exteriores, controlando e dominando toda e qualquer situação. Não sabemos o mais básico da educação que é a solidariedade, o sentir-se inserido numa sociedade, junto ao outro, convivendo e não competindo com o outro. Dominando conhecimento, mas partilhando saber, ampliando as conseqüências dessa modernidade com todos e não apenas com uma minoria. Exercendo sua civilidade no sentido de afinação com o local onde vive, explorando seus costumes e hábitos, talvez assim possamos construir uma pessoa digna antes de um ator.

Toda essa proposta nasceu da práxis diária, por um lado empiricamente e também do estudo investigativo ao longo dos anos de atuação como atriz e no magistério. Ao longo de mais de dez anos ministrei diversas Oficinas, porém, como ponto de referência, as que tiveram uma seqüência e propiciaram o aprimoramento da teoria aqui exposta, foram as ministradas no Centro Cultural São Paulo (CCSP) em 1997, 1999 e 2001, como também no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Rio Grande do Sul em 1991. Foram elas que propiciaram o enriquecimento desse trabalho, seu sucesso foi o número zero de evasões e o trabalho com um público muito eclético congregando diversas classes sociais.

Como metodologia de ensino tomei como base Viola Spolin, que sistematizou de forma livre e lúdica, alguns preceitos já descritos por Stanislávski, como a consciência e a objetividade da execução dos exercícios. A tríade de Viola – “quem, onde e o quê” baseada em brincadeiras infantis, situa o aluno-ator, não só crianças, mas jovens e adultos, naquilo que tem de executar. Essa tríade também é encontrada nos esquemas da Commedia dell’Arte, como meio de expressão da improvisação. Toda história começa com alguém (quem), em algum lugar (onde), fazendo alguma coisa (o quê), é a tríade da própria vida, do nosso dia a dia, da compreensão mais rudimentar da consciência de se estar no mundo. Viola trabalha a expressividade, num primeiro momento, sem palavras, o que facilita muito o desenvolvimento e progresso do aluno-ator dentro do jogo teatral. Seus exercícios, entretanto, devem ser adaptados à nossa realidade, porque foram concebidos para uma realidade norte-americana e para crianças norte-americanas, sociedade extremamente diferente da nossa.

O sistema Stanislávski, já descrito no capítulo anterior, contém uma didática, uma organização sistemática que conduz o aspirante a ator às várias facetas da arte de representar. O que Viola preconiza – a fisicalização das emoções – pode ser comparada às ações físicas de Stanislávski que sempre vêm carregadas de significados, porque toda ação no teatro está sempre sobrecarregada de signos. No jogo sempre estará incluso a observação, de si e do mundo, a concentração, a memória das emoções e o ritmo interior e exterior.

Para a sala de aula, os primeiros exercícios que ela propõe em seu livro são de extrema relevância para o início de qualquer curso. [1] Sua disposição da sala de aula sempre dividindo grupos, sempre fazendo com que todos sejam atores e todos sejam platéia em momentos distintos, democratiza e cria no grupo a necessidade de verbalizar a sua opinião e a encontrar no outro as suas próprias soluções. O papel do professor-diretor, como mediador dessas tarefas tira a máscara do professor detentor da verdade, transformando-o em incentivador e participante dos exercícios, dadas as suas possíveis e permitidas intervenções. Não há julgamentos de valor, mas comentários positivos baseados na própria experiência vivida pelos alunos. O jogo se dá naturalmente, e deve ser espontâneo, é a maneira pela qual se resolve um problema dado, se executa a improvisação elaborada. Não há longas combinações prévias, somente a definição do tema e divisão dos papéis e de como executar a tarefa.

O papel da plateia é fundamental, faz parte do jogo. A observação do dia a dia, do mundo real deve aumentar e começar a fazer parte do próprio desenvolvimento do aluno-ator, como queria Stanislávski ao enfatizar a observação do mundo como matéria prima do ator. Ao buscar expressar-se somente com o corpo, sem a palavra, o aluno-ator necessita de um preparo corporal que falta ao método de Viola. Partindo do jogo o aluno-ator tem em si, ainda, a ansiedade e timidez inerentes ao ser humano nessa situação. Portanto, a introdução de uma técnica terapêutica que propiciasse uma introdução ao jogo que viria a seguir torna-se, para mim, urgente e necessária.

O professor de teatro, formado ou não, artista ou não, repete o perfil do professor regular, aquele que é fundamentalmente “narrador” de uma teoria, nas palavras de Paulo Freire [2] e os alunos “pacientes e ouvintes”. A obrigação precípua do professor é, então, transmitir a maior carga possível de conteúdos, no caso do teatro, submeter o aluno-ator aos mais diversos exercícios, sem muito tempo para reflexões e opiniões, sem tempo para digerir o que foi experienciado. O aluno fica sendo um depósito de informação, daí o conceito de “educação bancária” de Paulo Freire, o professor é o que sabe, os alunos os que nada sabem. A opressão em sala de aula gera dominação, o professor passa a ter o poder do conhecimento e os alunos os dominados e oprimidos por não terem. Ora, no ensino do teatro, não se pode, não se deve repetir isso, sob pena de se transmitir equivocadamente um conhecimento que lida de perto com a vivência das pessoas, assim como a alfabetização. A grande descoberta de Paulo Freire foi que o professor nada pode ensinar se o aluno não estiver motivado a aprender, se o conhecimento a ser aprendido não estiver próximo dele, inserido em seu universo. O ensino do teatro na formação de atores não pode ser diferente, está comparativamente ao lado da alfabetização, é uma nova linguagem a ser aprendida, a ser vivenciada. Os primeiros exercícios de Viola cumprem esse papel, ao suscitarem a observação, se deixarmos livres os temas a serem propostos para os jogos, e os aproximarmos da realidade do aluno-ator, este estará mais à vontade e sua experiência será mais enriquecedora para ele mesmo. Nesse ponto Freire e Viola convergem por proporem um ensino baseado na liberdade, na supressão da educação bancária, de acúmulo e não de experiência e por aproximarem os alunos entre si. Eles mesmos resolverão os problemas em pequenos grupos, a fim de poderem expor sua visão da história. O foco passa a ser a compreensão do que se quer expressar e como se vai expressar. O resultado cênico não importa muito, pois é na vivência mesma é que o aluno irá perceber sua maneira de expressar-se. O início é tímido, ou exagerado, não importa, é a platéia quem dará a medida para a atuação.

O jogo como exercício funciona como um momento único de desenvoltura e criação, voltando a insistir, sem a preocupação de ser ou vir a ser ator, mas tão somente como meio de desinibição e relaxamento para o próprio aluno. É nesse contato, que o aluno-ator tem com os outros, consigo mesmo e com o próprio jogo, que ele se define com aptidão ou não para o palco ou descobre nele mesmo potencialidades de iniciativa e transformação de si mesmo. A cada Oficina uma maneira de agir era usada, uma maneira de jogar era diferente e de qualquer forma eles reagiam muito bem.

Na verdade, deparei-me com minha primeira turma de alunos de teatro no Colégio Tabajara, em 1987, onde fui lecionar logo depois de terminar o curso de magistério. A indicação partiu da professora de quem fui estagiária e o interesse da escola foi bem grande em iniciar o teatro como disciplina. Fui muito animada e com a técnica de Viola Spolin na cabeça, afinal, eram crianças da 5ª à 8ª séries do ensino fundamental. A técnica, já um pouco adaptada por mim, foi muito eficaz, as crianças criavam e se divertiam com as histórias. Porém, comecei a perceber que não havia inserção dessa disciplina no currículo escolar, não havia também controle dos alunos. Quando um professor faltava, eles colocavam aqueles alunos na “aula de teatro”, crianças que não tinham contato com a aula. Era impraticável dar aulas naquelas condições, tentei mostrar aos diretores como as crianças não gostavam daquela sala cheia e como era incômodo fazer aula com crianças estranhas a nossa turma. Foi inútil, eles não me davam atenção, então me demiti.

Embora tenham sido cursos que não vingaram de alguma forma, vale citar que em 1996 o Clube de Regatas Tietê de São Paulo resolveu fazer um projeto de um curso de teatro a fim de mobilizar os associados e tentar criar um festival interclubes. Gostei da idéia e apliquei minha técnica somente para 8 inscritos! É óbvio que o curso não prosperou, isso raramente acontece em Clubes hoje em dia. Trouxe comigo 3 alunos e com mais 2 interessados criamos um curso “doméstico” de iniciação teatral em minha própria casa, que deu muito certo e durou 1 ano. Em 1997 o Grupo de Teatro Amador do Senai me pediu uma oficina de preparação de atores. Não havia trabalhado com atores até então, portanto fiz o possível para explanar minha prática e tentar criar uma atmosfera de relaxamento, fazendo com que se esquecessem que eram “profissionais” para poderem usufruir das brincadeiras e do próprio grupo. Deu certo, eles sentiram que os ensaios estavam rendendo mais e que as apresentações seguintes se fizeram melhores.

Passei minha vida inteira vendo o teatro não ser levado a sério, assistindo a donos de cursos de teatro contratando “professores” por uma quantia irrisória e cobrando dos alunos mensalidades altíssimas. Exigem o que é impossível fazer – transformar uma sala de aula repleta de jovens em atores profissionais. Levam seu registro de artista como se levassem o passaporte para a televisão e ficam por aí, perambulando. Acredito que foi essa indignação que me fez conceber uma idéia de curso voltada mais para o desenvolvimento do aluno-ator, primeiramente, como atuante na sua própria vida. Tentar centrar esse aspirante a ator na realidade em que ele próprio vive, sem a ilusão de que ser ator é o caminho mais curto e rápido para o sucesso profissional. Antigamente ninguém queria um ator na família, chegando até ser motivo de desgosto se tal acontecesse. Hoje não, os pais incentivam os filhos a serem “artistas”, a estarem na “mídia”, isso sim é motivo de orgulho – ator de novelas ou jogador de futebol!

Em 1994, militante política ativa e também engajada na luta ecológica, concebi uma trilogia de peças infantis para teatro de rua. A história mostrava o caminho de conscientização de duas crianças da metrópole com seus problemas urbanos. Os textos fizeram sucesso entre as crianças. Concebemos uma montagem de teatro de rua, onde o uso do corpo era primordial. Nessa época tive a honra de ter como colaboradora, na preparação corporal dos atores, Maria Luiza Rodrigues Silva, excelente na dança-teatro, quando nem se ouvia falar nisso. Com ela aprendi muito. Então pensei em elaborar um livro ampliando as questões ecológicas, estendendo-as às questões da luta pela terra em nosso país e as nossas diferenças sócio-econômicas. Como sabia pouco sobre a luta pela terra, fui buscar o MST em sua sede nacional e fui muito bem recebida por seus dirigentes. Todos foram muito amáveis e me forneceram todo o material de que precisava. Foi quando recebi um convite para fazer Oficinas de Teatro nas escolas do MST. Concordei na mesma hora e eles me encaminharam para uma escola no interior do Rio Grande do Sul. Lá fui eu com uma “técnica” nova na cabeça e muita curiosidade. Era muito longe o lugar, mas valeu a pena, havia alunos do Brasil inteiro e eu estava encarregada de trabalhar com uma turma, pela manhã, de líderes de assentamentos que estavam cursando o primeiro grau. E à tarde com uma turma de professores de assentamentos que cursavam o segundo grau. A turma da manhã veio mudar toda a minha metodologia. É que essa turma do primeiro grau, por estar tomando contato com a escola, estava mais solta, desprovida de opiniões já formadas e ao mesmo tempo com um pouco de descrédito quanto a voltar a estudar. O teatro chegou então como meio de valorização pessoal, de fé neles mesmos e também como forma de integração do grupo, de reforço do coletivo. Senti que poderia formar uma turma para um curso voltado para o desenvolvimento do ser humano primeiramente. Fiz uma Oficina prática voltada aos jogos teatrais, o que facilitou muito numa turma tão grande (50 pessoas!). O resultado foi surpreendente, a diferença do trabalho da manhã para o fim da tarde era visível. Todos foram muito carinhosos e a empatia se fez entre nós. Jamais me esquecerei deles. Eram quatro dias apenas e eu tinha de correr para dar conta de tantas Oficinas. No domingo e na segunda-feira foram feitas as Oficinas do segundo grau. Iniciei, como a Oficina anterior, enfatizando o jogo teatral, que era a essência da minha metodologia e que requer disponibilidade de improvisação e criação. Os alunos que fizeram incursões teatrais se mostraram pouco interessados em pesquisar o jogo teatral, postura que eu só encontrei em atores e alguns alunos aqui de São Paulo, que menosprezam o jogo, não por desconhecimento, mas por incapacidade. Notei então que eles esperavam uma Oficina “teatral”, no que o termo tem de mais burguês. Pareceu-me que eles quisessem um curso que os ensinasse a fazer teatro para um público passivo, que era exatamente o que eu não queria. Fiquei muito surpresa com isso e travamos uma salutar discussão, eu questionava a posição política do grupo lembrando a função que o teatro teria ali no MST. Acredito que tenham entendido e aproveitado a Oficina até o fim, porque apresentaram um trabalho coletivo muito difícil, mostrando o esforço do aprendizado. Meses depois e até hoje posso presenciar no noticiário intervenções teatrais do MST, assim como recebi diversos materiais impressos sobre teatro feitos por eles. Logo após eu ter chegado em São Paulo, o MST incumbiu-me de fazer um esboço de conteúdo para a disciplina de Educação Artística que eles desejavam ampliar. A proposta de escolas específicas voltadas ao meio rural, ou seja, com currículo diferenciado é o grande salto que se pode dar em termos de educação em nosso país. Sendo assim, uma cadeira de Educação Artística deve ser voltada a esta realidade. Para mim, educação artística é preparar a criança para o despertar da capacidade, que todos têm, de se manifestar artisticamente, numa linguagem que transcende a mera comunicação usual, reforçando o fazer coletivo. A arte tem o poder de trabalhar o ser humano integralmente, de torna-lo sujeito da história. Ao unir prática e teoria, no fazer artístico, a criança realiza sua fantasia, pressuposto básico do desenvolvimento, da imaginação e da criatividade. A disciplina de Educação Artística dá margem para que se crie um curso diferenciado, no qual se possa desenvolver e despertar a consciência. O olhar estético, o fazer artístico, é ver o mundo com a sensibilidade que todos têm, é despertar em si mesmo a vontade de reproduzi-lo. Este despertar encontra facilidade no ser humano que já vive em contato com a natureza, é uma ampliação da visão do belo, redescobrindo o mundo com um olhar livre e crítico. Parece-me que o resultado foi positivo nas escolas, e eu me senti muito honrada em ter contribuído mesmo que com tão pouco.

A primeira Oficina ministrada no CCSP foi Atuando no Palco da Vida, nome que resume a prática e roteiro de aulas, bem como de toda uma formulação que nasceu da experiência de atuação e do seu estudo. O conteúdo basea-se no conceito de que a palavra não é a primeira comunicação que se dá entre seres humanos. A linguagem do corpo, seu biótipo, desvela nosso ser, antes mesmo de sabermos o nome de nosso interlocutor. O corpo tem sua própria comunicação, pois carrega códigos imperceptíveis ao olhar costumeiro, porém significados preciosos a um olhar perscrutador. No entanto, um corpo que se expressa mal destrói qualquer discurso que se pretenda persuasivo. Um corpo que respira mal não flui suas emoções. Um corpo sem expressão e energia não está vivo plenamente, não atua no palco da vida. Representamos diversos papéis em nossas vidas e, para tanto, acumulamos muita tensão em nosso corpo. A modificação do estado de tensão e do estado de não expressividade genuína pede técnicas concretas condizentes com nosso mundo contemporâneo. Saber combater o stress diário, saber dominar e conduzir uma expressividade adequada das emoções são princípios básicos para atuar-se melhor profissionalmente. A proposta que levei ao CCSP era de uma Oficina aberta e livre dirigida ao aperfeiçoamento e desinibição do profissional em geral que quisesse crescer interiormente e fazer refletir em seu corpo um equilíbrio harmonioso e verdadeiro.

Obviamente a primeira oficina estava carregada de expectativa e muita ansiedade. Porém, a turma colaborou muito, sem saber, pois a heterogeneidade do grupo trouxe interação, o que era desejado.

Na primeira parte da aula sempre faço um exercício de respiração de Reich já descrito anteriormente. A receptividade foi sempre muito boa e nessa Oficina trabalhei em cada aula um anel de Reich, explicando o que significava cada um deles. Nos exercícios sempre tentava associar o significado do anel com o tema do exercício, assim sendo uma emoção era evocada em cada turma. Como eram 50 participantes e os grupos eram sempre de 5 a 7 integrantes, os exercícios que evocavam emoções tornavam-se mais breves o que facilitava os comentários seguintes aos exercícios. Os temas abstratos e as composições criadas e executadas no momento mesmo da apresentação transpareciam muita emoção.

As discussões finais no grupão eram sempre muito disputadas transcendendo os temas apresentados e, a cada grupo, reportava-se a vida de cada um. Todos queriam enfocar sua história, contar seu progresso e suas sensações em fazer os exercícios de respiração e no encontro com o outro dentro dos diversos grupos.

Foram apresentadas construções corporais, expressões que nem eles sabiam que eram capazes de fazer. Não usar a fala possibilitou a total concentração no corpo e uma maior observação racional do exercício, pois ele teria de ser comentado e contado, exigindo atenção no criar e fazer. Os que assistiam, embora fosse muito difícil de se obter o controle, pois estavam mais preocupados com a próxima apresentação, demonstravam entendimento do que tinham visto.

Ao usar temas abstratos nessa Oficina, foi obtido um efeito muito bom, pois era um grupo eclético, de pessoas que variavam de 16 a 50 anos. Então, sempre os mais maduros davam boas idéias e os mais jovens, com a vontade e a ação, equilibravam as atuações do grupo. Outro desafio a que eram submetidos era a troca dos grupos a cada novo jogo, o que fazia com que todos trabalhassem com todos e não houvesse preconceito por parte de ninguém. Se o ser do aluno-ator modifica-se com a oficina, o da professora também. Na primeira Oficina constatei que aquele modo de desenvolver uma vivência, e o termo aqui se reforça, era possível e causava excelentes resultados. Para o aluno comum, sem pretensões a ator, a Oficina ofereceu a oportunidade de voltar-se para si. A disciplina que o fazer teatral exige pode servir para qualquer pessoa. Ao olhar para si mesmo, ao aprender isso o aluno se expressa melhor.

Da segunda vez fui convidada pelo CCSP a conceber uma Oficina dirigida especificamente aos jovens. Vivenciando o Teatro: Uma Aptidão para a Vida – visava introduzir o processo lúdico do jogo e da própria vida, mostrando as respostas sobre a existência e o questionamento entre o certo e o errado, o bem e o mal, a vida e a morte: a arte exerce ainda um poder muito grande sobre o ser humano que se enxerga através das personagens e isso o leva a se reavaliar e a reflexionar sobre a sociedade e o mundo no qual está inserido. Toda manifestação artística está de certa forma engajada nos problemas, soluções e descobertas fascinantes do mundo, a educação de um povo se mede pela sua sensibilidade e seu grau de cultura, porque antes de ser um ator, o jovem terá de saber ser espectador, platéia, só quando souber observar e absorver a vida à sua volta é que estará pronto para mostrá-la e representá-la. O teatro tem o poder de diminuir a violência, canalizando a energia num sentido prazeroso, assim inibindo outros impulsos gratuitos, o jovem aluno vivencia personagens diversos e distintos, que o faz refletir sobre seus atos e atitudes e assim ponderar nas suas reações, pois de certa forma já as vive durante os jogos e improvisações dramáticas. Além de melhorar a socialização e integração do jovem, o objetivo da Oficina era mostrar a ele alternativas criativas para que preenchesse o espaço vazio de seu ser em busca de perspectivas concretas para o futuro. Como também, desenvolver a interação entre os jovens através da linguagem verbal, emocional e corporal, transformando-as em representação e, ao mesmo tempo, em reflexão da sua própria realidade.

Como o espaço físico era exíguo tentei acomodar a turma da melhor forma possível para o exercício de respiração que requer um lugar arejado! Dividi os grupos igualmente, no mesmo sistema de rodízio de participantes, contando com 30 pessoas, 6 em cada grupo totalizando 5 grupos.

As apresentações de cada grupo eram mais elaboradas, os adolescentes gostam de elaborar o que vão mostrar, nisso eles não tem vergonha nenhuma. Os temas eram livres, desde que fossem extraídos da realidade deles mesmos, de seu lugar de moradia, de atividades próprias da sua idade. Sem poderem falar, as histórias iam sendo contadas muito bem, eles se mostravam com grande facilidade em desenvolverem e mostrarem suas histórias. Então me pediram um exercício de “teatro mesmo”, para eles poderem finalizar o curso. Lembrei-me de O Ídolo (de Charles Antonetti traduzido por Osmar Rodrigues Cruz) belíssimo exercício, largamente utilizado por meu pai em seus cursos. Como são dois grupos na história, logo eles se identificaram com quem iriam ficar, se nos “bárbaros” ou nos “homens simples”. São diversas ações sem falas que se sucedem retratando a escolha e a adoração de um ídolo, assim como a luta pela supremacia da terra. O resultado foi excelente, pena que o CCSP não disponibilizou uma sala de espetáculos para uma apresentação final, haja vista o empenho e dedicação dos participantes. Nessa Oficina tivemos transformações relevantes de jovens que mal se expressavam nos exercícios, ou nos grupões de discussão de fim de aula, e que ao final do curso estavam emitindo suas opiniões.

Na terceira Oficina Teatro - a liberdade do ser foi de inscrições recordes, tivemos de dividir em 4 turmas de 50 pessoas, a fim de não dispensar nenhum dos 200 inscritos entre 13 a 25 anos. Tentei centrar-me na idéia de que o teatro sempre foi o meio mais eficaz de expressão do ser humano, seja em seu próprio âmbito psicológico, seja em sua própria realidade. Ao vivenciar outros personagens no simples jogo teatral, o aluno-ator busca, primeiramente, em seus próprios sentimentos o material necessário. Num segundo momento, volta-se a sua própria realidade buscando subsídios para o personagem, reconhecendo-se como parte do mundo real. Talvez por tudo isso o teatro seja a arte mais completa, pois reúne todas as vivências passadas, enquanto projeta novas alternativas de ser. Sendo assim, o teatro é expressão do ser, em liberdade e consciência, enquanto espelho do mundo e reflexo da sociedade.

Uma prática teatral voltada ao jovem pode transformar sua existência, na medida em que o solicita a mergulhar em seus próprios sentimentos, confrontando-os e reconhecendo-os nos sentimentos de outros jovens. Concomitantemente, suscita nele mesmo a necessidade de buscar em sua realidade social a raiz de sua própria expressão no mundo. Ao se perceber atuando, o jovem desperta sua consciência em todas as direções, promovendo uma melhor compreensão de sua realidade interna e externa, de seu próprio ser no mundo.

A Oficina Teatro – a liberdade do ser pretendia, primeiramente, resgatar no jovem a confiança em si mesmo perdida, o encontro com sua própria humanidade e socialização num mundo tão individualista, mostrando que a liberdade real de ser, requer uma prática de conhecimento de si e de solidariedade. Pretendia, também, fornecer informações básicas de atuação teatral, que se dá no próprio jogo dramático e nos exercícios de expressão corporal.

Reservaram um espaço no porão do CCSP totalmente aberto. Era o contrário de tudo o que eu já havia feito por lá. Não quiseram fazer seleção dos 200 inscritos alegando que era o início de uma nova gestão eleitoral e que portanto deveriam dividir as 200 pessoas em 4 turmas da seguinte maneira:

1ª turma - Manhã (Abril e Maio)
2ª turma – Tarde (Abril e Maio)
3ª turma – Manhã (Junho e Julho)
4ª turma – Tarde (Junho e Julho)

A escolha partiu da direção, foram reunidos os inscritos e divididos em grupos e surgiu a possibilidade de eles escolherem os horários. Essa escolha me foi imposta como solução, pois em nenhum momento eu concordei com um método tão antipedagógico e que só traria transtornos, como ocorreu. As turmas 1 e 2 estavam repletas, tínhamos 50 pessoas em cada turma. A turma 3 já mostrava uma certa evasão de uns 20% e a turma 4 teve uma evasão de 60% ocasionando um desastre, pois não podíamos parar e então chamamos quem quisesse frequentar o curso, ou quem fosse conhecido dos participantes!

Mantive os exercícios de respiração como introdução e o mesmo esquema dos grupos. Porém, a motivação para os exercícios era outra, eu pedi que se baseassem, como tema para os exercícios em notícias de jornais e revistas. Repetia que ninguém precisava gastar nada pois há sempre alguém disposto a ceder um jornal antigo ou uma revista usada. Eles pré selecionavam um artigo preferido e este era colocado para o grupo e daí composto o exercício sem palavras. Contava que com esse exercício eles pudessem desenvolver o gosto pela leitura e pela crítica, como também discutir os temas mais relevantes do país. Foi um resultado muito bom, por instantes muita emoção nos temas mais preocupantes como a violência. Mas também muita risada na escolha de notícias que mostravam o ridículo do poder.


[1] Ver SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. SP, Perspectiva, 1963
[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 13ª ed., RJ, Paz e Terra, 1983, pg. 65


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