DIÁRIO DE SÃO PAULO - COLUNA DE ALBERTO D’AVERSA –
17/01/1969
“A Moreninha” (1)
Um jovem amigo meu, desses que fazem questão de
praticar a revolução permanente, cuja faixa de alimentos mentais oscila
monotonamente entre Sartre-Brecht-Marcuse e alguns produtos caseiros, cuja ação
verbal explode durante a atividade gastronômica da classe em restaurantes de
metafísica tristeza, agrediu-me, na rua, com uma rajada de perguntas:
-
“Você gostou da
“Moreninha?”
No
momento não compreendi, disse distraído:
-
“Qual moreninha?”
-
“A de Osmar.”
-
“Problema dele.”
-
“E seu também e de
toda essa crítica caduca e vendida que escreve de teatro.”
Eu
poderia ter retificado e entrado na zona das recíprocas xingações; não valia a
pena; preferi deixar o meu jovem amigo na ilusão que crítico teatral é venal,
corrupto e corruptível na secreta esperança de vir a ter, depois de vários anos
de impoluta profissão, concretas propostas monetárias, ou, em casos de
compreensíveis pudores da parte empresarial, ofertas de carros ou casas de
campos com piscina.
Continuou:
-
“Você viu teatro
mais alienado (aparte: notei que esse adjetivo vem sendo usado em proporção
direta da alienação de quem o pronuncia; fecho a parêntese) desta “Moreninha”?
Nós estamos na face oculta da terra, somos vegetais beócios, o homem está dando
voltas ao redor da lua, temos os “Soyuz 4 e 5”, aí, no céu e nós, aqui, estamos
fazendo a “Moreninha”, pô!”
-
“Fala com Zé, ele
sabe.”
-
“Que Zé?”
-
“Celso.”
-
“Mas o diretor é
Osmar.
-
“Mas Celso, que
faz Galileu, está na obrigação de ficar na base de lançamento dos foguetes,
Osmar pode ficar em órbita. Acontece porém o contrário, não acha?”
-
“Acho nada porque
não compreendo.”
Fui
obrigado então a fazer um discurso extenso cuja síntese era, mais ou menos,
esta:
“Uma
sociedade teatral, como qualquer outra sociedade, vive e atua sobre planos
diferenciados onde as convenções (ver Eliott – “Civilização e Cultura”) são
feitas para serem respeitadas até pelos anti-convencionais que, como é sabido,
destruindo uma convenção, automaticamente, criam um novo acordo. Ora, ninguém
pode exigir um só tipo de teatro assim como não pode exigir um só tipo de
consumo: deve existir um teatro de vanguarda e até um teatro de retaguarda com
todos os estágios intermediários: o verdadeiramente importante é que cada um
cumpra bem o seu papel, que a vigarice não seja hábito: que o teatro que afirma
ser político-social não seja fascista e burguês, que o de vanguarda não seja
remastigação de experiências européias de há trinta ou mais anos, que o de
comédia saiba fazer rir e assim por diante. Desonesto é prometer champanha e
oferecer Coca-cola.
Osmar
Rodrigues Cruz, Silveira e Petraglia nos prometeram um musical extraído de “A
Moreninha” de Joaquim e, milagre!, nos deram “A Moreninha” de Joaquim: nestes
momentos em que o teatro político virou hermético, covarde e oportunista, o de
vanguarda renunciou totalmente à inteligência e o melodramático perdeu o
conhecimento das regras do jogo e tornou-se um produto híbrido e insulso,
produções como esta “Moreninha” consolam pela honestidade das intenções e a
eficácia da realização. (cont.)
Uma moreninha necessária (2)
Entre
todas as disciplinas parece que a sociologia foi a que herdou o incomodo
patrimônio das frases feitas e das convenções arqueológicas condenando regras
inevitáveis a frases de folhinhas. Quem não escutou: - cada país tem o governo
que merece - ?.. ou, o teatro, o cinema, o futebol, a metalúrgica que merece?
etc. – A obviedade da constatação berra altíssimo com voz impostada por dona
Maria José de Carvalho: milagre seria, logicamente, o contrário.
Há
anos que estamos pregando da necessidade de um teatro comercial dignitosamente
realizado, limpamente produzido e sãmente administrado; em todas as artes
existe uma produção que faz parte da retórica mais que da poética
da mesma arte; no Brasil os produtos da primeira categoria são, por
condicionamento histórico, mais numerosos e aceitos que os da segunda, por um
Drummond ou um Guimarães Rosa quantos Jorge Amado e Zé Mauro Vasconcelos; por
um Vila Lobos e um Santoro quantos Vandré e Tom Jobim: o novo Torquemada
poderia fazer uma infinita lista de cassações. Todos compreendem essas
evidentes constatações, todos menos a gente de teatro e de cinema. Atualmente
qualquer filme nacional de uma certa ambição é feito não mais em função do público
mas em função dos vários festivais; qualquer produção de teatro não é mais
feita (como queriam Aristóteles e B. Brecht para divertir e produzir prazer)
mas para ficar na história do espetáculo mundial; os nossos diretores trabalham
agora somente em função da eternidade ou da intemporalidade histórica; montar
uma comédia de Abílio, por exemplo, ou de L. C. Muniz é crime de imbecilidade,
opera-se somente visando uma internacionalidade vistosa e improdutiva. Todos
estão esquecendo Araraquara.
Osmar
Rodrigues Cruz é, até agora, o único diretor que, como Paulo Autran, conhece o
público ao qual se dirige; conhecimento não determinado por irresistível
vocação à mediocridade (como já foi dito) – seu anterior repertório confirma o
contrário – mas pelo contato diário com uma massa que vai ao teatro exigindo
determinadas satisfações.
Cansei
de dizer, mas não é demais repetir: teatro é antes civilização de espetáculo e
depois de textos: vale mais um “Milagre de Annie Sullivan” otimamente
representado que um “Galileu Galilei” de equívocas significações, vale mais uma
“Moreninha” que entretém que um Shakespeare anestésico e soporífero.
Produções
como esta “Moreninha” são necessárias por criar as condições de inevitável
presença de um público, de educação teatral, de didatismo mínimo e
indispensável; se não existem espectadores os gênios não podem fazer os Brecht
de moda, as elites desaparecem, o engano não convence mais.
E
depois, quem pode afirmar que o produto comercial seja um produto fácil?
Esqueceram as direções de “4 em um quarto”, “Os inimigos” e, por exemplo, a
recente de “Tudo no jardim”? (continua porque me diverte)
Uma moreninha chamada Marília (3)
Quem
nesta “Moreninha“ do Joaquim, adaptada por Miroel Silveira, musicada por
Cláudio Petraglia e dirigida por Osmar R. Cruz, espera ver e
escutar palavras, situações e ações sobre:
a)
táticas das
guerrilhas na América Latina;
b)
posição de Nixon a
respeito da Aliança para o Progresso;
c)
o Vietnã como
ponto de conflito ou de equilíbrio entre as grandes potências mundiais;
d)
problemas da
U.N.E. e da C.B.D.;
e)
reforma agrária;
f)
incesto;
g)
personagens que
exercem antropofagia física ou moral;
h)
posição do
intelectual brasileiro frente ao Ato Institucional nº 5;
i)
...e preocupações
parecidas...
É
melhor que não vá ao Teatro Anchieta porque poderia sair levemente
decepcionado.
Quem,
pelo contrário, quer passar duas horas de extrema amabilidade, de gostoso
divertimento e de repousante descanso, pode ir sem susto porque, além do
prometido, poderá encontrar coisas inesperadas de agradável surpresa...
(...)
Depois de tudo o que escrevi sobre esse espetáculo acho que, de parte minha,
seria retórica burrice louvar a exata e fantástica direção de Osmar Rodrigues
Cruz.
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