A voz e a linguagem (1ª parte)
As leis
da pantomima são naturais para todas as pessoas. Todos nós excitamos o
verdadeiro momento desde que chegamos ao mundo. O movimento é característico da
vida, desde o berço até o túmulo. Exceto para as características individuais e
raciais, as idiossincrasias e os maneirismos, o movimento é o mesmo no mundo
inteiro. O corpo em movimento comunica-se pela súplica ao olhar. Por
exemplo, para transmitir a lua, pode fazer simplesmente indicando-a. Se nenhuma
lua existir brilhando, o corpo assumirá as verdadeiras características da lua.
Há dificuldade, porém altamente criadora. A pantomima é a linguagem universal
da expressão. Imagine-se o homem primitivo informando os seus camaradas
sequiosos e livres, de que ele descobriu uma fonte a certa distância, longe.
Quão eloquentes naturalmente serão os seus movimentos físicos e seus gritos
vocais! Sua linguagem falada (a fala) deve afinal ter sido muito rudimentar,
porque o seu corpo e a sua voz foram em si canais adequados à comunicação de
suas necessidades ordinárias (comuns). Considerando que a voz e a pantomima são
naturais em relação ao homem, a linguagem é adquirida. Ela é o resultado da
civilização. Pela voz traduz-se que o som que se emite através da boca ou do
nariz, quando as cordas vocais na laringe são postas em vibração pelo ar
exalado. A linguagem é a voz ou o ar em articulação através de certas
adaptações arbitrárias do maxilar, dos lábios, dos dentes, do céu da boca e da
língua. A linguagem é a palavra falada. A simples articulação das unidades de som
t – a – b – l inicia o quadro de uma tabela para a mente de alguém que
converse com a língua inglesa, porém para nenhum outro. Por isso, a linguagem
falada é convencional e local. Por outro lado, para exprimir a tabela
pantomimicamente exigir-se-á tempo + flexibilidade do corpo. Porém ela será
compreendida por todos que tenham olhos para ver. De maneira a satisfazer as
exigências complexas da vida moderna, a linguagem tornou uma indispensável e
convencional interrupção e substituto da comunicação vocal e pantomímica. Um
sólido amortecimento dos dois mais recentes canais da expressão natural é o
preço que pagamos pela rapidez e conveniência da civilização.
Quais
são as exigências teatrais, considerando-se a voz e a linguagem?
Antes de
por o pé no palco, o ator submete-se a um treinamento rigoroso, técnico e
criador, na voz e na linguagem. Nos seus estudos técnicos desenvolve a voz na
flexibilidade e ressonância, e purifica a linguagem por meio do domínio dos
elementos sonoros dela. Em seus estudos criadores ele treina ao mesmo tempo a
voz e a linguagem, a fim de corresponder às atividades da mente, da memória e,
acima de tudo, da imaginação.
Sua
preparação técnico-criadora prepara-o ao trabalho vindouro. Para o verdadeiro
momento, o ator começa a falar sob o palco, sua voz e sua linguagem devem
conduzir-se clara e distintamente ao ouvido da plateia. Considerando que, na
vida, utilizamos um volume de voz e concisão de linguagem suficiente para levar
apenas ao ouvido da pessoa citada, no teatro o ator deve fazer mais. Através da
ressonância (não ruído) e cuidadosa articulação (não declamação), ele deve
enriquecer o ouvido da plateia. A plateia deve ouvir e compreender com
facilidade tudo o que o personagem diz. Esta lei é fundamental. Pois se a
plateia acha difícil ouvir e compreender, ou é importunada pela áspera e
desagradável qualidade da pronúncia do ator, não pode propriamente prestar a
sua atenção ao personagem e à peça. Uma qualidade de voz agradável ao ouvido e
uma concisão de linguagem facilmente compreendidas, são os padrões aos quais o
ator deve apegar-se se o personagem quiser viver para a plateia.
Embora
sejam fundamentais, a audibilidade e compreensibilidade não são fins em si. O
ator pode ser ouvido e compreendido com facilidade e ainda falhar essencialmente
em seu objetivo. Pois ele deve ser ouvido e compreendido como o personagem.
Sua projeção de voz e linguagem nunca deve perturbar os traços sutis que o
ligam como personagem a outros personagens e outras situações. Aí deve
permanecer sempre presente aquela realidade do personagem, não obstante a
ampliação da voz e da linguagem.
No
teatro, a voz e a linguagem devem servir ao personagem não ao ator. É o
personagem quem fala. O ator é apenas o meio através do qual o personagem se
revela à plateia. Sujeito a determinadas limitações impostas sobre ele pela
plateia, o personagem é o juiz do que será a sua linguagem. O “digam as
palavras – rogo-vos – como eu as pronunciei para vocês”, dito por Hamlet, em
seu conselho aos atores, - pode bem ser o conselho de um personagem a outro
ator, confiado na sua criação. O ambiente, os comparsas, o chamamento de
atenção, a preparação do personagem e a plateia, são todos fatores
contribuintes. Uma plateia aguardará ansiosamente um garoto na rua, criado em
ruas mortas da cidade de Nova Iorque, falar como um jovem culto educado no
luxo, e cujos pais falam um inglês perfeito. Entretanto, ainda a linguagem do
garoto desalinhado e sujo pode ser, deve, se o acaso for para ter significado
no teatro, permanecer meridional (do sul) falará com um acento sulino. Mas se a
plateia for formada por gente do norte, o personagem quererá suavizar os
provincianismos radicais do dialeto sulista, apenas compreendido pelas pessoas
familiarizadas com ele.
Como a
linguagem do ator, a qualidade de sua voz é considerada pelo personagem. De
fato, isto dependerá do tipo de personagem e da situação em que ele se
encontra. A voz revelará se o personagem é homem ou mulher, jovem ou velho,
forte ou fraco, insolente ou tímido, rude ou amável, obstinado ou agradável.
Pintará a verdadeira alma do personagem e refletirá o total de suas
experiências significativas. A voz desenhará o indivíduo tão claramente que
mesmo o cego, de acordo com Coquelin, pode vê-lo. Mas inclusive a
qualidade fundamental da voz mudará ao adaptar-se a situação especial em que o
personagem possa estar. Pois há momentos em que mesmo o forte pareça fraco, e o
fraco forte; o rude amável e o amável rude; o jovem velho e o velho jovem. Isto
acontece assim porque o tipo de ambiente direto (as pessoas ou as coisas
num lugar) afetarão o personagem. Sendo essencialmente imitador, o homem
consciente ou não, tende a assumir em termos do corpo e da voz as verdadeiras
características do ambiente, a menos que a sua natureza seja essa, para
abandoná-las. “Eu sou parte – disse Ulysses no poema de Tennyson – de tudo que
eu encontrar”.
A voz e
a linguagem, no teatro como na vida, devem ser coloquiais. Na vida, um orador é
conversador quando transmite perfeitamente os seus desejos, pensamentos e
sentimentos a um outro indivíduo. No palco, o ator é coloquial quando transmite
claramente os desejos, pensamentos e sentimentos do personagem a outros
personagens, para o bem-estar da plateia.
A
verdadeira dicção relativa à conversação é dependente da flexibilidade ideal
quando o pensamento, o sentimento ou o desejo se manifestam através da voz
somente da voz. As palavras faladas são, como o foram, rosários sobre o fio da
qualidade da voz. A verdadeira qualidade vocal variará em flexibilidade, de
acordo com, se as palavras são ou não utilizadas. A voz torna-se mais flexível
e expressiva quando as palavras estão ausentes, do que quando estão presentes.
As palavras podem tornar a comunicação mais particularizada, porém o seu
emprego não alterará essencialmente a qualidade fundamental da voz, mesmo que
elas possam afetar a sua flexibilidade.
A
flexibilidade da voz do ator dependerá dos pensamentos, sentimentos e desejos
do personagem, a partir de sua concentração sobre as pessoas e as coisas, num
ambiente. A voz é mais viva quando corresponde espontaneamente ao objeto da
experiência perceptiva. No entanto, isto pressupõe que o orador entrou primeiro
em contato com o objeto, seja ele pessoa ou coisa, não obstante os cinco
sentidos. Esse contato pode ser direto, na memória ou na imaginação. No contato
direto a voz é mais vibrante, viva e flexível, porque a experiência atual é
sempre nova em relação àquela que desfrutamos vivendo. No contato da memória a
voz é também vibrante, de acordo com o tipo de imagem mental. Aqui a voz pode
assumir uma nota nostálgica se a imagem for agradável e muito distante, uma
nota áspera se desagradável e próxima. No contato imaginário, a voz pode ser
plena de esperança ou desespero, de acordo com a natureza da imagem desenhada
na imaginação. Tão logo o ator se identifica com o passado, presente e a
vida imaginária do personagem e é sensibilizado para tudo que caia dentro da
aura de sua concentração no palco, a qualidade de sua voz levará o selo da
verdade. A sua voz refletirá o personagem e a situação somente se ele
formar uma imagem bem definida do personagem e da situação e for capaz
livremente de projetar tal imagem em termos do seu corpo e sua voz. Se ele
fizer isto, o ator não necessita nunca estimular um modelo de artifício vocal
como substituto.
Se os
atores falham em obter uma flexibilidade real de voz, é porque falham em tomar
contato com a realidade das circunstâncias externas do personagem. Porém, a
flexibilidade vocal sozinha não fará a conversação coloquial, a menos que as
palavras do personagem sejam ditas com uma inteira compreensão de seu conteúdo.
As palavras são rótulos que damos ao mundo em que vemos, ouvimos, tocamos,
cheiramos e sentimos. Elas são formas convencionais que transmitem os nossos
pensamentos, sentimentos e desejos. A análise de qualquer período revelará a
presença de um sujeito, um verbo e um predicado, quer expresso ou implícito. Na
sentença eu quero a maçã, eu quero dizer a minha pessoa, quero,
um desejo da ação, maçã, um tipo de fruta. A (the), apenas denota
uma maçã especial em relação a exclusão de todas as outras maçãs, nada
significa em absoluto. A declaração por escrito “eu quero uma maçã” será
compreendido por todos que possam ler inglês, mas será interpretada de várias
maneiras diferentes. No entanto, quando se fala “quero a maçã”, pode ter
menos significação, dependendo do estado do comportamento individual de quem
quer a maçã. Sua flexibilidade vocal, colorida pelo seu comportamento, afetará
a natureza das palavras faladas. Linguagem viva é quando se adapta por meio da
matéria-prima (a voz), da qual, por sua vez, procede a cor da imagem de que a
palavra é um rótulo. As palavras conduzem a vida somente quando a matéria que
as torna possíveis, está presente naquele que fala. E a matéria está presente
no momento em que e somente quando os sentidos tenham tomado contato com o
mundo da realidade. (ORC)
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