A Concentração
A
concentração não é, como tem sido muitas interpretadas e praticadas, aquele
estado em que o indivíduo está assim ligado com o assunto de sua concentração
para que ele cesse de ser um ser humano e torne-se, pelo contrário, um “feixe
de nervos”, uma criatura isenta de sensibilidade e razão. Pois a verdadeira
concentração é sem esforço – natural e sem vontade. Pode ser definida como
aquele estado em que o indivíduo toma contato com o retalho da vida, aquele
estado indireto em que a atenção individual está focada numa pessoa, objeto,
lugar, episódio ou ideia. A concentração é sempre no presente. Portanto, é um
estado vivo. O tema de concentração, contudo, pode preocupar o passado ou o
futuro, bem como o presente, porém o momento da concentração é um momento
presente. Você pode planejar o que fará amanhã, às duas da tarde, você pode revolver
em sua memória um episódio que tenha ocorrido no dia 12 de julho último, porém
você está revivendo o passado ou antecipando o futuro agora.
O ato de
concentração exige um indivíduo, um tema, contato e ação.
Discutindo
as exigências na ordem mencionada, o indivíduo é o sine qua non do ato.
Sem o indivíduo existir, nem o cérebro, nem o sistema nervoso recordam as
impressões dos acontecimentos no mundo. Após a verdadeira concentração ser
possível, o indivíduo deve estar mental e fisicamente preparado para receber as
impressões. Pois se a mente está ou cansada por causa do trabalho excessivo ou
indolente, pela inatividade, e o corpo incapacitado por muitíssimo ou
pouquíssimo exercício físico, os sentidos não podem claramente perceber, nem a
mente claramente recordar ou agir sobre o que tem recebido. Uma mente sã, num
corpo são é mesmo mais indispensável ao ator do que é a outrem. A boa saúde,
pois, é o requisito inicial da vida. Sem ela, a verdadeira concentração é
impossível.
Na vida,
o indivíduo que recebe impressões é sempre em si próprio. As circunstâncias sob
as quais as impressões são recebidas podem variar, porém a sua natureza
essencial ou estrutura constitucional fundamental permanece basicamente imutável.
No palco, todavia, o indivíduo assume dimensões diferentes. É ele mesmo e mais.
Possui, como era, uma dupla personalidade. Visto que antes que, a
despeito da imutabilidade do ego, não seja transformado o ator realmente,
mas imaginariamente no personagem da peça. Até o mais minucioso ditado
de seu ser imaginário, o corpo e a voz do ator servem com lealdade e juram
obediência. Portanto, o ator é um indivíduo peculiarmente treinado para
imaginar um ser além de que o seu próprio e exprimir esse ser em ritmos do
corpo e da voz.
A
segunda exigência é o tema. Na vida cotidiana, o assunto pode ser tudo. Pode
ser este escrito, o concerto da véspera ou a partida de futebol de amanhã. Mas,
vida diferente o assunto do ator não é da sua própria escolha. Para ele é a vida
escolhida e reduzida a conteúdo significativo (o personagem ou o enredo) e
expressa em forma significativa (diálogo e ações sugeridas). O tema é a peça,
ou melhor, a vida na forma de uma peça, e a principal contribuição do ator à
arte teatral é a sua expressão em termos vivos. Mais do que na vida, a
concentração no palco é peculiarmente significativa porque o verdadeiro assunto
da concentração (os personagens e os episódios) está em si condensado em forma
artística e significativa.
A
terceira exigência é o contato pelo ator com o tema (assunto). Através do
contato com o “script”, o ator em primeiro lugar concebe a criação imaginária
do autor. Com o período de ensaio, o ator começa por exprimir a ideia da peça,
em termos vivos, através do contato com outras pessoas (os atores) e coisas (os
adereços) num lugar (cena) e perante uma plateia imaginada. Com a “performance”
(representação), o ator cristaliza o seu papel, porém a sua apresentação nunca
é uma distribuição de papéis, em molde inflexível. Permanecerá num estado
flexível porque ele deve manter contato direto com os demais atores sobre um
palco e, ao mesmo tempo, contato indireto com uma plateia real no auditório.
Tudo
isso cai dentro da esfera dos cinco sentidos do personagem, enquanto no palco
torna-se material pela concentração do ator. O ator terá contato com o tema
(qualquer coisa que ele possa ser) se acaso recebe o que o personagem receberá
através de seu ambiente com pessoas e coisas, em qualquer momento determinado
de qualquer situação determinada. As avenidas da percepção são os seus cinco
sentidos – e, destes, os mais importantes são os olhos e os ouvidos (a visão e
a audição). Quando o ator não toma contato com os demais personagens e objetos
num lugar, ele nega a realidade exterior do mundo em que ele vive. Uma plateia
não pode aceitar uma peça quando as ações e reações dos atores contradizem as
ações e reações normais da própria vida! “Uma suspensão temporária de
incredulidade” que, de acordo com Coleridge, é o ponto mais alto da ilusão
criadora para a plateia, nunca é alcançado quando o ator através da
insensibilidade ignora tais coisas que, na vida, ele ignorará por causa da
verdadeira natureza de sua existência no espaço.
A
exigência final é a ação. Quando há contato entre o indivíduo e o assunto, a
ação deve acompanhar como uma questão de fato. O cérebro recorda e ajuíza do
tema, como for percebido pelos sentidos, e o resultado é um estado de
comportamento pelo indivíduo a favor ou contra o tema. O indivíduo acredita ou
não, quer totalmente ou em parte, se acaso forem pessoas, coisas, lugares, bem
como ideias. Por acordo ou desacordo não se restringe a ideias somente.
Geralmente, o acordo resulta na aceitação do tema pelo indivíduo; o desacordo,
em sua rejeição. Porém, neste caso, deve haver (existir) primeiro contato. Se
concordar, o indivíduo começa por assumir as verdadeiras características do
tema expresso, de fato, em seus próprios termos, pois o homem é essencialmente
imitador. Se discordar, o indivíduo impede (evita) o tema. Se acaso ele não
concorda nem discorda, a ação resultante revelará o seu estado de indiferença
ou fraqueza em tomar uma decisão. Mais simplesmente estabelecido, o indivíduo
ou quer ou não quer o objeto de sua concentração. Mas sob todas as
circunstâncias, o contato pelo indivíduo com o tema resulta em ação. A ação ou
comportamento do indivíduo é sempre instantâneo, dependendo de como rapidamente
o assunto é percebido pelos sentidos e transmitido ao cérebro. A ação nunca é
adiada. Ainda que Hamlet adie o assassínio de Cláudio, ele não permanece
insensível aos fatos que envolvem a morte do pai. Do ponto de vista do ator,
Hamlet é um homem de ação, mesmo que sua ação manifeste-se em si, de fato, em
inação. O verdadeiro adiamento do assassínio (crime) é uma ação em si!
(IORC)
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