A Inspiração
A
inspiração poderia ser definida como aquele momento de impulso criador
intuitivo quando tudo das faculdades e sentidos individuais parece estar
trabalhando juntamente, numa harmonia soberba; aquele momento de concentração
sem esforço sobre o objeto da atenção, quando o objeto funde o indivíduo e o
indivíduo no objeto; quando as nossas ações parecem ser ditadas por uma força
além de nossas próprias; quando o que fazemos está correto, porque conhecemos e
sentimos o que desejamos; quando o instinto dramático é verdadeiramente
despertado e o ator passa de um degrau a outro, sem os degraus intermediários
de análise, que parecem deselegantes na comparação. Muitas vezes os juízos são
instintivos e, por um motivo misterioso, infalíveis. Na medicina, Deus
Todo-Poderoso é maior do que os médicos. No desempenho, o Onipotente (e a
inspiração provém daquela fonte divina) é maior do que aqueles que analisarão
as formas da criação e transmitem os seus preceitos a outros.
A
verdadeira inspiração chega apenas com o trabalho, o estudo e a prática. Sem
uma noção da técnica do estudo e da expressão, a intenção pode ser boa, mas a
execução falha e, sob tais circunstancias, a inspiração não pode ser de
utilização prática. Alguém pode estar inspirado para pintar uma paisagem, mas,
a menos que esteja familiarizado com a tela, a pintura e o pincel, a sua
inspiração será de nenhum proveito, exceto, talvez, para criar um desejo de
domínio mais completo desses instrumentos que o habilitarão a transmitir a sua
intenção aos demais. Ou alguém pode estar inspirado para se tornar um
cirurgião, porém do que se utiliza, pode ser a tal inspiração, se acaso se
senta numa cadeira balançando os seus pés e não indo à escola médica, estuda
anatomia durante anos e anos e, em seguida, pratica, pratica, pratica operando.
De modo idêntico, muitos atores podem estar inspirados para representar Hamlet,
mas se deixarem de estudar a peça e, de maneira especial, o personagem Hamlet
durante meses, mesmo anos, não podem fazer justiça ao dinamarquês lúgubre de
Shakespeare. Nem dará inspiração ao ator a melhor articulação, porém, sim, as
sistemáticas práticas de exercícios em relação ao objetivo visado. É somente
quando o ator supre a sua inspiração original com o estudo e a prática permanentes,
que pode esperar atingir a estatura de um verdadeiro artista. Quanto mais
poderoso for um artista, mais árduo trabalhará na técnica de sua Arte: o estudo
do personagem e a sua execução através de um conhecimento da expressão.
Um ator
privilegiado pode, às vezes, atingir grandes alturas durante um ensaio ou uma
representação, como pode obter resultado semelhante na hora seguinte, se a
inspiração o tiver abandonado? Para o desempenho não é apenas a produção mas a
reprodução, fazendo repetidas vezes de novo o que foi feito antes e, ao mesmo
tempo, criando para a plateia a ilusão de espontaneidade. Os atores que podem
reproduzir tais momentos através somente da inspiração, são gênios raros. Mas,
a grande maioria dos atores cai dentro da categoria dos simples mortais. Os
simples mortais – parece – devem contentar-se com alguma coisa mais, tolerante
e substancial. O que tem a fazer o simples mortal, se acaso a inspiração o
abandonar? De vez em quando, a presença da inspiração pode dar ao simples
mortal o verdadeiro sentimento artístico, em parte de uma cena, mas o que tem a
fazer se a inspiração o deixar durante o clímax dessa cena? Então mais uma vez,
conquanto A possa estar inspirado à noite, B, seu comparsa, não
pode estar. Como fazer então? O desempenho é uma empresa coletiva e os melhores
resultados são alcançados quando todos contribuem para o acabamento do produto
terminado: a peça. Como pode o ator, exceto através de um conhecimento de sua
arte, recriar os efeitos obtidos na inspiração?
A
preparação da peça, primeiro, através do trabalho individual, depois o trabalho
coletivo, por todos os atores durante o ensaio, e o conhecimento de como os
efeitos são produzidos e por que são os fundamentos da boa atuação,
substancial e digna de confiança. Sob tais circunstancias, se a inspiração
chegar, pode o ator atingir os seus pontos altos. Mas, ao mesmo tempo, os
limites dentro dos quais sua inspiração pode funcionar, terão sido bem definidos.
Pois se o ator tiver, através do estudo, da prática e do ensaio, assimilado o
modelo da peça, sua inspiração não pode representa-lo falso, quebrando o modelo
estabelecido. O ator nunca estará tão inspirado quanto materialmente para mudar
o enredo da peça, ou esquecer que existe uma plateia, ou que ele está num
palco, ou que Desdêmona é de carne e sangue na cena da morte. Por outro lado, a
inspiração por uma razão desconhecida abandonará o ator que está bem preparado,
o seu conhecimento da peça, o seu conhecimento do personagem, o seu
conhecimento da subida e queda de uma cena, o seu conhecimento do que fazer e
como faze-lo (a sua técnica), servi-lo-á muito bem, naturalmente. A noção da
arte (técnica na preparação e na execução de um papel) ajudará a assegurar a
presença da inspiração e tornará o emprego prático dela quando chegar.
O ator
que não sabe quais os efeitos que tenha produzido e como os preparou, pode
raramente ficar confiante. Pode estar excelente à noite, mas não pela manhã.
Antes que o ator possa dar uma representação artística, deve conhecer a sua
peça, o seu personagem e estar apto a projeta-la em termos teatrais, através de
uma compreensão de como os efeitos são atingidos na arte. Somente sob tais
circunstancias, chegará muitas vezes à verdadeira inspiração. Mesmo assim o
resultado não será perfeito. A perfeição é um ideal, não é?
(IORC)
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